Grande brasileiro

Cem anos de Jarbas Passarinho, um político híbrido e fértil que se entregou ao Brasil

De anticomunista suspeito a 'democrata demais', ex-ministro fez história como um grande brasileiro

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Jarbas Passarinho foi senador, governador do Pará e ministro na ditadura militar e no governo Collor. Foto: Arquivo/Agência Brasil

Nascido há exatamente cem anos, em Xapuri, Jarbas Gonçalves Passarinho rompeu a fronteira oeste do isolado território do Acre, para ser eternizado na história política de seu país, através das suas posturas firmes, construtivas e a serviço dos interesses de momentos distintos do Brasil e da sociedade brasileira. 

Neste 11 de janeiro de 2020, o Brasil celebra o centenário de vida do acriano que presidiu o Senado, governou o Pará e comandou os ministérios da Educação, do Trabalho e Previdência e da Justiça, em governos militares e da redemocratização. Jarbas Passarinho volta a ser reconhecido como um democrata completo, após erguer uma hígida ponte entre duras realidades brasileiras, do Regime Militar à redemocratização do país. 

O sétimo filho de seu Ignácio e dona Júlia, recebeu do destino o dom dos discursos, manifestado desde os doze anos de idade, nos primeiros ensaios políticos, no movimento jovem de apoio à revolução constitucionalista liderada por São Paulo, em 1932. Inspirava-se no tribuno do Império, Rui Barbosa, e era comparado com Carlos Lacerda, pela letalidade de seu raciocínio rápido, fluente e irônico; enquanto repelia a oratória de Hitler.

Considerado um político “anfíbio”, Jarbas Passarinho sempre teve orgulho de sua farda, irritava-se com preconceitos nutridos no período militar, a exemplo dos momentos em que alguém o elogiava, lançando mão da tentativa de distanciar suas origens de formação civil e militar. Citou tal incômodo em discursos, monografia, e em seu artigo publicado em 1985, intitulado “Coronel com muita honra”.

Foi sob o comando de Jarbas Passarinho, na Presidência da CPI dos Anões do Orçamento, que o Congresso Nacional tomou a primeira iniciativa de cortar na própria carne, investigando ilegalidades de parlamentares, entre 1993 e 1994.

Como ministro da Justiça do governo de Fernando Collor (PROS-AL), conduziu a demarcação das terras Yanomami, em 1992, hoje com mais de 9 milhões de hectares. E também teve papel importante no diálogo entre a jovem esquerda e setores conservadores do parlamento e da sociedade, durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

O jornalista Alexandre Garcia disse ao Diário do Poder que considera que Jarbas Passarinho foi uma das pessoas mais importantes da sua época. E lembra que o general Eduardo Villas Bôas, quando ainda era comandante do Exército, o perguntou por que Jarbas Passarinho não tinha sido indicado a presidente da República. “Eu respondi que, naquele tempo, os generais não faziam continência para coronel. Agora fazem para capitão. Ele achou graça”, lembrou Garcia.

Ao ser sondado em pelo menos duas oportunidades para a sucessão presidencial, Jarbas Passarinho bloqueou as articulações, por lealdade aos governos a que servia.

“Eu fico admirado pelo exemplo que ele deu. Um homem que foi governador do Pará, presidente do Senado, ministro da Previdência, da Educação, da Justiça e do Trabalho, e morreu renegado, classe média. Eu conheço a casa dele, no Lago Norte. É uma casa modesta”, disse o jornalista, antes de destacar: “Ele é uma pessoa exemplar como homem público. Ele se entregou ao país. Jamais procurou benefícios pessoais, financeiros, materiais. Jamais”.

Jarbas Passarinho na tribuna do Senado. Foto: Arquivo/Agência Senado

Do AI-5 à Anistia: Um grande brasileiro

Seus críticos tentaram por anos exorcizar seu espírito democrático, condenando Jarbas Passarinho por ter apoiado o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que instituiu a Ditadura Militar no Brasil. Nesse intento, foi sempre citada sua célebre fala, em apoio à medida, para o presidente Costa e Silva: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. 

Os jornalistas Pedro Rogério Moreira e Alexandre Garcia atuaram na TV Globo durante a trajetória política de Jarbas Passarinho, e citam o conceito célebre do filósofo espanhol Ortega y Gasset, em sua obra A rebelião das massas , quando abordam o apoio do ex-ministro ao AI-5: “O homem é o homem e suas circunstâncias”.

“Sob esse prisma não enodoará a biografia do cidadão honrado. O observador isento de hoje, 50 anos após aquele transe, concordará em que, se o ferimento mortal à Constituição não era um imperativo de consciência, era um imperativo das circunstâncias. Vivíamos as ações inaugurais do terrorismo urbano que tisnou a felicidade da nação; só depois é que veio a reação de mesma ferocidade desfechada pelo Estado brasileiro. Custou a nós todos vinte anos esse dramático empate sanguinolento”, disse Pedro Rogério, ao Diário do Poder.

Alexandre Garcia reforçou o contexto em que foi tomada a medida drástica: “Nas memórias dele, naquele livro Um híbrido fértil, ele diz que abominava o AI-5. Mas as circunstâncias o fizeram assinar. Ele assinou contrariado. Mas eram as circunstâncias da época. São as pessoas e suas circunstâncias”.

Pedro Rogério rememora outro papel importante de Jarbas Passarinho, quando volta à ribalta, como presidente do Senado Federal, para ajudar a derrogar a derradeira escuridão.

“Ele então posta-se ao lado do presidente João Figueiredo, que promovia a anistia às bandas que no passado derramaram sangue brasileiro. O homem era o mesmo cidadão honrado, as circunstâncias que comandam o homem, desde tempos imemoriais, outras. A vida dos grandes políticos se nos apresenta desse modo, mas só na aparência há incongruência nas atitudes. Tanto é verdade que, neste centenário, aliados e adversários daqueles tempos se unem para lembrarmos o grande brasileiro que foi Jarbas Passarinho”, destacou Pedro Rogério.

Jarbas Passarinho em votação no Senado. Foto: Arquivo/Agência Senado

Anticomunista suspeito, e democrata demais

Homem de compromisso e com sensibilidade social, Jarbas Passarinho lutou contra o marxismo durante mais de trinta anos, finalizando a pregação semanal de seus artigos com a queda do muro de Berlim. A lembrança é de seu ex-assessor de imprensa e ex-secretário particular no Ministério da Justiça, Aluísio Carvalho.

Ele também destaca que o ex-ministro, por exercer sua crítica convicta ao totalitarismo dos regimes comu­nistas, conquistou lugar de honra na berlinda das esquerdas intelectuais, inconformadas com a fundamentação inteligente e as trincheiras conquistadas no combate fervoroso, mas sem fanatismo.

Além das calúnias e difamações de adversários enfurecidos, parte importante do preço alto que pagou pela luta contra a esquerda foi a tentativa de assassinato de seu irmão, esfaqueado pelas costas em um sindicato de petroleiros de Belém (PA). Ao assumir o governo do Pará, em 1964 , perdoou o agressor que tentou assassinar seu irmão.

As ameaças de uma viuvez que a deixaria sem condições de sustentar filhos pequenos fizeram a mulher do ex-ministro, Ruth, voltar aos estudos de Direito.

E o rompimento com a chamada “ala progressista” da Igreja Católica o fez ser alvo de uma campanha infame nas eleições de 1982 ao Senado. 

Apesar de sua postura crítica, Jarbas Passarinho combatia a ”indústria do anticomunismo”, considerada por ele uma radicalização ideológica que convinha às esquerdas. E esse afastamento do fanatismo alimentou desconfianças e atritos com setores mais duros dos governos militares, que o viam como um aliado com idéias sociais avançadas demais para estar no mesmo barco.

Aluísio Carvalho lembra que a ideia de que “todos eram suspeitos, até prova em contrário”, não passava por Jarbas, nos ministérios que ocupou. Colocou ex-cassados em cargos de assessoria de seu gabinete, reduziu o poder das DSIs (Divisão de Segurança de Informações), representações ministeriais do SNI (Serviço Nacional de Informação), a seu ver preocupadas com bisbilhotices menores.

Também contestou punições de caráter ideológico consideradas injustas, brigou por sindicatos, levantando quase todas as intervenções a que estavam submetidos, punindo apenas duas das entidades por corrupção. E ainda defendeu a liberdade de cátedra, um tabu para a época.

“Democrata demais, e um perigo para a Revolução, como concluiu Carlos Lacerda, ao apontá-lo como ‘o último ministro de Jango, que chegou atrasado’. De Costa e Silva, [Jarbas Passarinho] considerava que os últimos momentos de vida do velho Marechal foram suficientes para o reconhecimento da História contemporânea quanto à sua vontade determinada de redemocratizar o País. A Médici, quando morreu, dedicou uma série de artigos mostrando que a luta armada colocou na contramão os seus propósitos de liberalização, fato que um dia a seu ver, as revisões desarmadas do tempo haverão de reconhecer”, relatou Aluísio Carvalho. 

Como senador, Passarinho articulou a Constituinte. Foto: Arquivo/Celio Azevedo/Agência Senado

Articulador, sem tergiversar

Ex-diretor de Jornalismo do SBT, Luiz Gonzaga Mineiro exalta a postura política de Passarinho como de um parlamentar firme, democrata, aberto ao diálogo e à ampla e fértil convivência com os contrários, íntegro na defesa de valores morais, e, além de tudo, no mundo político, tido e havido como alguém que guardava valores inegociáveis no respeito a compromissos acordados.

Mineiro destaca sua transparência, com a esquerda e com a direita no debate ideológico. “Ninguém o pegava de costas, tergiversando. Todos conheciam sua coerência, respeitavam-na, e sabiam que daquela fonte não viriam surpresas”, resumiu.

O jornalista relata ter sido testemunha da presença firme e construtiva de um democrata completo a serviço dos interesses do Brasil e da sociedade brasileira. “Inconformada com a morosidade da Comissão de Sistematização, talvez a mais importante da Constituinte, foi a esquerda que se movimentou para colocar Passarinho na posição de presidente. O resultado foi um grande sucesso, reconhecido pelos constituintes, incluindo o presidente [da Constituinte] Ulysses Guimarães”, registrou Mineiro.

Jarbas Passarinho morreu em Brasília (DF), na manhã de 5 de junho de 2016, aos 96 anos, em decorrência de problemas de saúde atribuídos à idade avançada.

Testemunhas da história

“[Jarbas Passarinho] fazia os fatos acontecerem por onde passava. Na educação, promoveu a reforma do primeiro e segundo graus. No Trabalho, harmonizou as relações entre os sindicatos e o poder. Combateu e saiu vitorioso na luta conta o déficit da Previdência.

Ministro quatro vezes, senador de vários mandatos, jamais viu seu nome envolvido em desvios éticos. Serviu aos governos militares, mas nunca deixou de receber as homenagens da oposição pela firmeza de suas posições em ativou fatos que se sobrepunham a interesses partidários.

Foi um baluarte na defesa de princípios de dignidade nas relações de poder, um pluralista co convívio com o pluripartidarismo, um defensor permanente das grandes causas sociais.

Costumava dizer que nunca maculou suas mãos com o sangue dos adversários, e nunca desonrou sua vida pública com o azinhavre do dinheiro mal havido” (Aluísio Carvalho, ex-assessor e ex-secretário particular no MJ)

 

“Passarinho, o coronel da ditadura, como diziam seus raros detratores, era um lorde a serviço da verdade, da honra e do compromisso. Com esse lorde das coisas do bem, convivia o homem simples, afável, bem humorado e respeitoso no trato com o semelhante, sobretudo com os mais humildes.

Havia um indiscutível reconhecimento da postura ética e moral de Jarbas Passarinho por todas as correntes políticas do Parlamento. Não transgredia seus princípios e nem fazia o jogo das barganhas, já tão em moda.

O Senador Passarinho era, sem dúvida alguma, um brasileiro sério. Um homem público digno e honrado. Passou por quatro ministérios importantes e manteve limpas as mãos que lidavam com grandes somas de recursos públicos. Como a imensa maioria dos brasileiros comuns, teve vida espartana, mantinha controle permanente sobre o acanhado orçamento doméstico, e tinha como único bem, ao morrer, a mesma casa modesta, sem reformas, que recebeu os filhos ainda adolescentes e na qual viveu por mais de 40 anos, pisando a mesma e velha cerâmica avermelhada das construções populares” (Luiz Gonzaga Mineiro, ex-diretor de Jornalismo do SBT)

Ouça o depoimento completo de Alexandre Garcia sobre Jarbas Passarinho:

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