Sergio Moura

Vivemos sob uma autocracia condescendente

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Os membros da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 (ANC) e seus sucessores nestes últimos 31 anos desprezaram a separação de poderes, princípio fundamental de uma democracia desde que Aristóteles escreveu “A Política”, há mais de dois mil e trezentos anos. A inexistência da separação de poderes nas instituições de um país leva a abuso de poder pelo grupo político dominante, característica das monarquias absolutistas da Idade Média e de tiranias contemporâneas nossas. O caminho para evitar esse abuso é o sistema de freios e contrapesos que, como nos mostra Montesquieu em “O Espírito das Leis”, foi criado para impedir que quem faz leis domine, ao mesmo tempo, o funcionamento da administração pública e julgue crimes e conflitos civis e também para evitar que um único poder possa limitar a liberdade do povo.

Embora o artigo 2º da Constituição afirme que os três poderes da União, Legislativo, Executivo e Judiciário, são independentes e harmônicos entre si”, artigos subsequentes, fartamente praticados, o desmentem.

Os desmentidos constitucionais à independência e harmonia entre os poderes que mais saltam aos olhos são, primeiro, a autorização para que membros de um deles exerça tarefas específicas de outro, e, segundo, o poder exclusivo, absoluto, incontestável por estranhos ao processo, e ilimitado que deputados federais e senadores têm de impor hábitos e despesas ao povo.

No primeiro caso está o poder de o presidente da República legislar através de Medidas Provisórias (art. 62); o dos deputados ou senadores ocuparem cargos no Executivo sem perder o mandato (art. 56 – I); o de eles eximirem seus pares cumprir penas criminais a eles impostas pelo Poder Judiciário (art. 55 § 2º); e o dos presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e o do Supremo Tribunal Federal ocuparem o cargo de presidente da República (art. 80). Onde, nesses artigos, está a independência de poderes do art. 2º? Sua afirmação é hipócrita.

Essa promiscuidade leva também a conflitos de interesse inaceitáveis no serviço público e no Direito: os membros do Congresso Nacional, quando no exercício de cargo no Executivo, passam a ser fiscais de si próprios, já que é missão dos congressistas fiscalizar os atos do Executivo (art. 49 – X); e o presidente do Supremo Tribunal Federal passa a ser, ao mesmo tempo, parte e juiz nas ações em que a União é parte, o que até o mais distraído primeiranista de Direito rejeitaria com um palavrão.

No segundo caso, vejam que interessante: em 5/10/1988, Ulysses Guimarães, presidente da ANC, com essas palavras “Declaro extinta a Assembleia Nacional Constituinte” – criada pelo art. 1º da EC nº 26, de 27/11/1985 –, extinguiu formalmente a missão “livre e soberana” de os deputados e senadores empossados em 1/2/1987 escreverem a constituição e, ao mesmo tempo, promulgou o art. 60 § 2º, que dava a estes e aos que os sucedessem o poder livre e soberano de a continuar escrevendo. Distração? Não, ele sabia disso, pois no seu discurso da promulgação, ele também falou: “…a Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade…”.

Portanto, como a Constituição de 1988 é detalhada ao ponto de imiscuir-se em praticamente todos os aspectos da nossa vida – tem 350 artigos e mais de 2.000 regras –, e como não há na Constituição nenhuma menção a limites para essa competência constituinte do art. 60 – até a vaquejada foi incluída nela, pela EC 96/2017 –, deputados e senadores têm o poder exclusivo, absoluto, ilimitado e eterno de impor-nos quaisquer restrições à liberdade e desrespeitos à propriedade que imaginarem, até em seu próprio benefício, em vez de cuidar do bem comum – o que fazem constantemente, como temos visto – e de se concederem impunidade perante a Lei.

Um sistema político que constitucionaliza a promiscuidade entre poderes e que autoriza um grupo de indivíduos a livremente dispor da liberdade e da propriedade dos demais, como se um direito divino fosse, pode qualificar-se como democrata? Eu acho que não. A meu ver, dadas algumas liberdades de que ainda usufruímos – até nossa propriedade depende do que eles interpretarem seja sua “função social” (art. 5º XXIII), nos moldes da Plataforma do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães de 1917, do Manifesto de Mussolini de 1922 e da Constituição da URSS de 1923 –, vivemos sob uma autocracia condescendente de um colegiado civil composto por 594 parlamentares. Por enquanto são 594, já que eles têm o poder de aumentar esse número “proporcionalmente à população” (art. 45 § 1º).

A ironia dessa história é que nós somos chamados por eles a cada quatro anos para outorgar-lhes esse direito quase divino. E nós o fazemos.

Não está na hora de revogarmos essa calamitosa Constituição e instalarmos uma democracia para o bem dos nossos filhos e netos?

Sérgio Moura é advogado, ex-executivo da IBM Brasil, consultor em políticas públicas, autor dos livros Chega de Pobreza (edição do autor, 2006) e Podemos ser prósperos – se os políticos deixarem (edição do autor, 2018), Fellow do Institute of Brazilian Issues da George Washington University; saamoura@uol.com.br

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