Ipojuca Pontes

Tereza Rachel: livro, arte e política

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O jornalista Simon Khoury está lançando na valiosa e bem ilustrada coleção “Bastidores – Série Teatro Brasileiro” uma longa entrevista com Tereza Rachel, a grande atriz falecida em 2 de abril de 2016, porém cada vez mais viva nos anais da vida artística nacional – e, de forma indelével, na memória do público cativo que não a esquece.

Tereza Rachel, além de atriz louvada pelos seus trabalhos em teatro, cinema e televisão, era igualmente ativa produtora de espetáculos teatrais, levando aos nossos palcos dezenas de peças da melhor dramaturgia nacional e estrangeira, conquistando, pela força do seu enorme talento, todos os prêmios, láureas e honrarias até então concedidos a uma atriz brasileira. Molière, Saci, Kikito, Imprensa, Coruja de Ouro, Candango, Associação de Críticos de Arte de São Paulo… Foram muitos!

Em 1961, no Teatro das Nações, em Paris, Tereza Rachel participou da Noite Mundial do Teatro, ao lado de atores como Vittorio Gassman. Jeanne Moreau, Sir Michael Redgrave, Jean Cocteau, Gérard Philipe, Alain Cuny, Joan Littlewood Nuria Espert, Tsarev, Jean-Pierre Aumont, Elvire Popesco, Constance Bennet, Jean Rochefort e Irene Salemka. Apresentada como representante do Brasil, a atriz recitou, em francês e português, “Essa Nêga Fulô”, poema de Jorge de Lima, sendo ovacionada.

(A propósito, Tereza Rachel não só cursou a Escola de Teatro Martins Pena e o Curso de Interpretação do Teatro Duse com estágio no Conservatório de Teatro de Paris, como se formou em línguas neo-latinas na Faculdade de Filosofia do Instituto Lafaiette, hoje UERJ).

Tereza Rachel.

Como empresária teatral, durante quase meio século de labuta, a atriz produziu três dúzias de peças e dois filmes, empregando centenas de atores, artistas e técnicos, entre músicos, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, eletricistas, maquinistas, carpinteiros, etc. – o  chamado “pessoal da pesada”. Em 1962, foi a primeira mulher que ousou produzir um texto de Nelson Rodrigues, o impactante “Otto Lara Rezende ou Bonitinha, mas ordinária”, clássico teatral que elevou o autor a categoria de “Anjo Pornográfico”. Mas Tereza também levou aos palcos autores do porte de Sófocles, Ésquilo, Mrozek, Ibsen, Tchecov, Whitiewicz,  Tennessee Willams. Bertold Brecht, dramaturgos clássicos e modernos que deram dimensão a arte teatral e que permitiram a encenação de espetáculos inscritos, pela beleza e originalidade, nos anais da moderna história do nosso teatro.

E mais: para dar um padrão de qualidade e abrir caminhos para novas propostas formais e de mise-en-scène aos seus espetáculos, ela buscou estabelecer um intercâmbio cultural entre países da Europa trazendo ao Brasil encenadores e personalidades como os franceses Claude Regy e Jorge Lavelli, o polonês Sloromir Mrozek, o alemão Peter Palisch, do Berliner Ensamble, e o espanhol Claudio Segovia, chegando a trocar correspondências com o diretor sueco Ingmar Bergman e o armênio Elia Kazan – este, para dirigir a montagem nacional de “Um Bonde Chamado Desejo”.

Nos inquietos anos 70, Tereza, também inquieta, sentiu a imperiosa necessidade de ter sua própria casa de espetáculos para montar suas produções. Catando suas economias, levantando empréstimos bancários, materializou sonho antigo e abriu as portas do Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, que logo se tornou um espaço cultural íntimo da cidade com encenações e montagens de peças clássicas e modernas, shows musicais, festivais de dança, cursos de interpretação, eventos e palestras em defesa da abertura democrática e da anistia.

Nesta fase, o “Terezão” passa a ser reconhecido como o Templo da moderna Música Popular Brasileira, abrindo espaço para afirmação de nomes como Gal Costa, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Ivan Lins, Nei Matogrosso, Gonzaguinha, Turíbio Santos e outros tantos.

Após sua reforma, em 1983,  o Teatro Tereza Rachel voltou-se para  a exclusiva apresentação de peças teatrais. Na sala, grande número de artistas, atores e diretores, profissionais experientes e iniciantes, encontraram pouso para materializar seus experimentos e acertos cênicos. Ao mesmo tempo, nele ocorreu o “boom” dos grandes musicais, tais como “Gota D’Água”, “Brasileiro, Profissão: Esperança”, “Chorus Line”, “Oh, Calcutta” “Rock Horror Show”, “Loja dos Horrores”, “Drácula”. Em pesquisas encomendadas pelo INACEN e pela Associação Carioca de Empresários Teatrais publicadas no Jornal do Brasil, o Tereza Rachel foi avaliado como o 2º teatro privado mais frequentado do Rio de Janeiro. Contavam-se nos dedos peças e atores de envergadura que não encontraram acolhida no palco do “Terezão”.

No capítulo da teledramaturgia, representando o papel da Rainha de Avilan na novela “Que Rei Sou Eu?”, de Cassiano Gabus Mendes, seu trabalho foi considerado como o de maior repercussão popular, até então, na história da nossa TV.

Para Aristóteles, a coragem está situada entre a covardia e a irresponsabilidade. Se assim é, pode-se dizer que Tereza Rachel foi uma mulher excepcionalmente corajosa, em atos e palavras. A começar na infância: filha de imigrantes poloneses que saíram de uma Varsóvia arruinada para se refugiar em Nilópolis, onde floresceu emergente comunidade judaica, Tereza cedo perdeu a mãe, Laya, vítima de uma cirurgia. O pai, Joseph Brandwain, comerciante de móveis usados, durante anos sobreviveu em crise pela perda da esposa.

Na distante Nilópolis, mero entreposto ferroviário, a futura atriz aprendeu as primeiras letras, exercitou a arte de declamar, atuou em pecinhas escolares. Ao lado do pai, já mocinha, estudava de dia em colégio de Nilópolis enquanto, à noite, enfrentando os trens da Central, cursou a Escola de Teatro Martins Pena, nas imediações da Praça da República. Com o pai recuperado, buscou profissionalizar-se nas companhias teatrais existentes, não antes de, sob as bênçãos de Paschoal Carlos Magno, embaixador em Londres, excursionar durante cinco meses pelos principais centros culturais da Europa, assistindo importantes montagens teatrais, visitando escolas e museus, ouvindo na Cinecittá palestras de personalidades como Fellini e Visconti – o que lhe deu, óbvio, novos parâmetros artísticos e maior compreensão da vida.

Bem observada, a vida de Tereza Rachel foi uma lição de criatividade e de luta para afirmação de sua arte e de sua personalidade incomum. Vítima de preconceitos e invejas ferinas, nunca se curvou ou perdeu o senso da generosidade humana.

No retrospecto da rica trajetória da vida da atriz não escapou ao livro  de Simon oportunos relatos das  relações de Tereza Rachel com a política. Eis alguns deles:

Seu pai, assinante da “Voz Operária”, era um entusiasta do socialismo propagado pela União Soviética. Tereza o seguia. Já no Rio, a estudante fez da sua casa um “aparelho” do Partido Comunista,  reunindo “quadros” aos quais eram distribuídas tarefas para difundir a  “causa”. A de Tereza era alfabetizar filhos de estivadores residentes nas imediações do Observatório do Valongo, na Praça Mauá. Um dia, na reunião do aparelho, o líder do grupo flagrou a estudante portando um exemplar de “A Prostituta Respeitosa”, peça de Sartre. O líder comunista quis proibir sua leitura. Resultado: a estudante Tereza expulsou o “camarada” e fechou as portas para reuniões do “aparelho”.

Em 1963, na noite de estréia da peça “O Berço do Herói”, provocação do comunista Dias Gomes contra o heroísmo militar, a polícia de Carlos Lacerda, governador do Estado, fecha as portas do Teatro Princesa Isabel. Tereza, que ensaiara durante 2 meses o papel  feminino do texto, não se conteve e, no braço, enfrentou a Polícia.

Em 1989, ao ouvir numa entrevista o analfabeto Lula dizer que nunca assistia peças de teatro, enquanto chamava seu advogado de “adévogado”, Tereza resolveu apoiar o “direirista” Collor de Mello. Fez campanha pró e foi considerada uma “judia alienada” por membros da  “classe”. Que passou a sabotá-la pelo resto da vida.

Em 1990, quando convidado pelo presidente para assumir a Pasta da Cultura, ela revela na entrevista que o “seu marido, Ipojuca Pontes, lhe chamou e disse: – “Olha, Tereza, o Collor me convidou para assumir a Pasta de Cultura. Se eu assumir, vão jogar muita lama em você”. E eu lhe respondi: – “Se você não defende suas ideias, quem vai defendê-las?”.

O livro de Simon Khoury não é a biografia que a grande Tereza Rachel está por merecer. Mas oferece ótimos subsídios. E como tal, deve ser lido e relido.

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