Temor e Tremor

O País viveu em 19 de dezembro dia de temor e tremor. Decisão individual do ministro Marco Aurélio Mello semeou pânico entre milhões de brasileiros. Mediante despacho liminar, em pedido formulado pelo PCdoB, S. Exa. – cuja personalidade audaciosa todos conhecem – ordenou a soltura dos condenados cujas sentenças condenatórias de primeira instância, confirmadas em segundo grau, não transitaram em julgado. Para fazê-lo buscou apoio no inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República (CR), onde se lê: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
O dispositivo constitucional deve ser aplicado a frio, ou admite interpretação? Ensina Recasens Siches, “Sin interpretatión, no hay possibilidad de que exista ningún ordem jurídico”. Diz, ainda, o jurista, que as normas gerais – constituições, leis, regulamentos – falam da única maneira que sabem falar, em termos gerais e abstratos. Por outro lado, a vida humana, as realidades sociais, nas quais se devem cumprir e, em cada caso, aplicar as leis, são sempre particulares e concretas. Por consequência, para cumprir ou aplicar uma lei ou um regulamento é obrigatoriamente necessário converter a regra geral em norma individualizada, transformar os termos abstratos em preceitos concretos. A isto é que se chama interpretação (Tratado General de Filosofia del Derecho, Editorial Porrua, México, 1970, pág. 627, tradução livre).
Aplicado à frio, a uma sociedade onde a violência e a corrupção alcançam índices alarmantes, e o Poder Judiciário não assegura a razoável duração do processo, e a garantia da ampla defesa não conhece limites (CR, art. 5º, LV e LXXVIII), o trânsito em julgado raramente ocorre antes de o réu ser beneficiado pela idade, esquecimento ou prescrição.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem como responsabilidade exercer a guarda da Constituição. Guardar significa aplicá-la no interesse da preservação do Estado de Direito Democrático, ou seja, com os olhos dirigidos aos superiores interesses da sociedade. Não pode tê-la apenas como peça de ficção ou figura de retórica, “destinada ao uso de oradores”, como disse certa feita Gilberto Amado.
Parece-me inegável que o pedido formulado pelo PCdoB tinha como endereço certo a Polícia Federal, em Curitiba, onde se encontra recolhido o ex-presidente Luíz Inácio Lula da Silva, condenado a 12 anos e 1 mês de reclusão. O partido de Manuela D’Ávila não está preocupado com o delinquente acusado de roubo de carro ou de assalto a banco. Por tabela, entretanto, seriam beneficiados centenas de outros encarcerados pela prática de delitos graves ou hediondos. Tome-se, como exemplo, o Rio de Janeiro, submetido à intervenção das Forças Armadas, como única maneira de se refrear o avanço do crime organizado e desorganizado.
Carlos Maximiliano, cuja figura ímpar foi exaltada com a publicação da obra “Memória Jurisprudencial do Ministro Carlos Maximiliano”, lecionava que “Os domínios da Hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal; o objetivo daquela disciplina é descobrir o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do Direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsias, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Livraria Freitas Bastos, RJ, 1961, pág. 54). “A palavra é um mau veículo do pensamento”, escreveu o exemplar magistrado.
Teria a Assembleia Nacional Constituinte, ao escrever o inciso LVII do artigo 5º, objetivado consagrar o princípio da impunidade em benefício de criminosos abastados, com dinheiro suficiente para a contratação dos mais afamados criminalistas? Frente à crueldade que caracteriza o mundo real, o dispositivo deve ser interpretado em sintonia com a aplicação concreta da lei e as exigências das vítimas e da sociedade. A quem cabe a responsabilidade quando a causa tem julgamento retardado, com violação do inciso LXXII, que assegura, a todos, a “razoável duração do processo”, seja pela utilização de recursos previstos em lei, seja por sucessivos pedidos de vista? Nada há mais desacreditado, no Regimento Interno do STF, do que o artigo 134, onde está escrito que “Se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subsequente”. Conheço Ação Direta de Inconstitucionalidade em curso há mais de 20 anos (ADI nº 1.625), por força de intermináveis pedidos de vista.
“Brasília é muito longe do Brasil”, alertou o ministro Roberto Barroso. O despacho do ministro Marco Aurélio, reprimido de imediato pelo presidente Dias Toffoli, confirma aquilo que sabemos, mas que apenas o ministro Roberto Barroso teve a ousadia de reconhecer. Quatro décadas de toga talvez contribuíssem para que o culto e elegante ministro Marco Aurélio perdesse de vista a vida real.