Pedro Rogério Moreira

Que fim levou?

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Nas décadas de 1960 e 70, publicava o Jornal do Brasil uma coluna diária bastante apreciada, cujo título era “Hóspedes da cidade”; ocupava bom espaço em página nobre, abaixo das charges do Lan ou do Ziraldo que se revezavam nas gozações políticas e de costumes. A coluna informava aos leitores quais eram os visitantes ilustres daquele dia, por sua relevância social, econômica ou cultural; sua procedência, profissão, o que vieram fazer, por quanto tempo e até o hotel em que se hospedavam no Rio. Dava-se especial atenção aos estrangeiros. Na época os grandes jornais mantinham repórteres-setoristas no aeroporto do Galeão, principal porta de entrada daqueles que desembarcavam na cidade maravilhosa, de fato maravilhosa, pois a violência urbana ainda não batia à sua porta nem batia em você.

O Globo, regido por mestre Evandro Carlos de Andrade, decidiu não ficar na rabeira e mandou-nos criar uma seção igual. Nasceu Estão no Rio, tão informativa quanto a original, embora não tivesse lugar cativo: ciganeava, ao sabor da diagramação, numa das páginas da editoria de Cidade, em cuja bancada sentavam-se expoentes jornalísticos e literários como o novelista Agnaldo Silva e o poeta e dramaturgo Tite de Lemos, sob a direção de José Gorayeb.

Mas a cidade maravilhosa, para desprazer mundial, começou a mostrar sua face diabólica; Evandro e o seu êmulo do JB, mestre Alberto Dines, resolveram de comum acordo extinguir as colunas, depois que ficou demonstrado que elas, inocentemente, serviam ou podiam estar a serviço de criminosos. De quebra, eram também as duas seções um guia prático e confiável para uma antiga ocupação que se sofisticava na figura da acompanhante. Ambas as colunas chegavam à delicadeza de acrescentar no pé do hóspede: “Viaja só” ou “Veio acompanhado da mulher e filhos”. Essa minúcia informativa foi motivo de queixa de hoteleiros da cidade, todos fariseus, aos doutores Nascimento Brito e Roberto Marinho, os capitães da imprensa, como se dizia. Foi fatal. Coitada das meninas, perderam.

Hóspedes da cidade não foi uma invenção do JB e nem o concorrente a copiou dele; colunas desse tipo existiam há décadas nos Estados Unidos, cuja imprensa é a mãe de todas as outras consideradas modernas, em todos os lugares, exceto, claro, em Cuba, Coréia do Norte, na Albânia de então e por aí afora. O clássico The New York Times deixou de publicá-la mais ou menos na mesma época em que elas morreram no Rio de Janeiro; a violência urbana havia se alastrado como peste e a imprensa não podia ofertar munição com a inocência contida numa coluna lida com natural curiosidade num tempo em que interessava ao leitor comum saber de alma limpa quem visitava sua cidade e em qual hotel chique se hospedava. A violência se globalizou muito antes de a informação fazer o mesmo. Hoje são os próprios viajantes que postam no Facebook a cidade de suas férias e de seus negócios; e, vaidosos ou exibicionistas, publicam a selfie com a praia de Ipanema ou o Pão de Açúcar ao fundo. Irão vê-los só os amigos da sua lista, vaidosos e exibicionistas como eles, e, claro, internautas criminosos à espreita de um assalto ou de uma mulher para namorar e roubar, quiçá matar.

Mesmo se tiver êxito, como todos torcem, a política vigorosa do marshall Sérgio Moro e do xerife local Wilson Wintzel contra a violência brutal no Rio de Janeiro, é difícil a coluna Hóspedes da cidade voltar às páginas dos jornais; não conseguirá atrair leitores diante da concorrência das redes sociais que informam on line o desembarque imediato do figurão objeto de interesse do leitor comum de décadas analógicas.

Como nossa matéria é de memória, relembro outra coluna fixa que desapareceu, também do tempo em que este memorialista exercia o jornalismo diário; estampava um título variado de jornal para jornal, de revista para revista, mas aquele que permaneceu foi o de O Globo, por traduzir diretamente o objetivo: “Que fim levou?” Discorria sobre uma celebridade ou quase celebridade; alguém que num momento havia gozado seus quinze minutos de glória e não era mais visto nos palcos, no rádio, na TV, nos campos de futebol, no cinema, raríssimas vezes na política. Cantores que fizeram sucesso em 78 rotações por minuto e não se adaptaram à modernidade dos LPs e aos ritmos importados, esses eram fregueses da coluna, assim como medíocres jogadores de futebol que um dia, numa tarde de muito sol e muito azar de um goleiro famoso, fizeram o Maracanã gritar seus nomes. “Que fim levou?” contava tudo: o destino infeliz, a paz de uma casinha no subúrbio ou a vida boa como Deus é servido na aposentadoria discreta e merecida.

Poucos políticos que no passado tiveram alguma relevância eram alvo da curiosidade dos repórteres destacados para escrever a vida que eles então levavam na atualidade dos anos 60 e 70. Se a memória não me trai, lembro apenas de um, cujo nome já me escapa; era um padre secular que havia sido vereador por alguns mandatos nos anos da Gaiola de Ouro, como então se dizia com desdém da Câmara Municipal do Rio. Ou seria ele de Nicteróy? Eta memória que trai o memorialista! Guardei, no entanto, que o biografado foi um bom sacerdote e um bom político, eis um currículo invejável.

O fato importante é que a coluna que falava dos esquecidos ou desaparecidos da vida pública, desapareceu ela também da grande imprensa brasileira. Mas seu objetivo sempre será contemporâneo de qualquer época, porque uma coluna de jornal pode morrer, mas a curiosidade pela vida alheia jamais terá fim. Sempre haverá um Adão e uma Eva para perguntar: “Onde fica o pé de maçã?”. Ou aquele vizinho mal-humorado que lhe pergunta: “Onde anda aquele filho da pê?”.

Portanto, ao contrário da coluna “Hóspedes da cidade”, essa que tratava da vida de antigas celebridades está com boas chances de uma ressurreição. Daqui a uns bons quatro anos, duração de um mandato presidencial e de uma legislatura na Câmara Federal, e de meio mandato no Senado, quem sabe volte a ocupar as páginas dos jornais e revistas a saudosa coluna “Que fim levou?”

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