Prisão preventiva de parlamentar, um ato complexo
Desde a Constituição do Império, de 1824, as Constituições brasileiras previram o instituto da imunidade parlamentar. Trata-se de prerrogativa institucional que assegura aos membros do Poder Legislativo a inviolabilidade civil e penal no exercício de seu cargo, garantindo intangibilidade por suas opiniões, palavras e votos. A principal finalidade da imunidade parlamentar é proteger a independência do Poder Legislativo contra outros Poderes para o exercício de suas funções típicas e atípicas de maneira adequada. Não é, e nunca foi, como se pode pensar, dar guarida à pessoa do parlamentar.
A imunidade parlamentar subdivide-se em (a) imunidade material, que consiste na inviolabilidade, civil e penal, por quaisquer opiniões, palavras ou votos, nos termos do art. 53, da Constituição Federal; e (b) imunidade formal, relativa à prisão, descrita no § 2º do art. 53, cuja redação estatui que “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.
O presente artigo tem o objetivo de abordar a imunidade parlamentar formal, mais especificamente quanto o sentido e o alcance da expressão “resolva sobre a prisão”, descrita no § 2º do art. 53, da Constituição Federal. É que, depois da Resolução 213, de 15 de dezembro de 2015, do Conselho Nacional de Justiça, e da vigência da Lei n.º 13.964, de 2019, a realização de audiência de custódia se tornou ato obrigatório para todos aqueles que forem presos em flagrante ou cautelarmente (dicção do art. 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos).
Afinal, ao serem presos por crime inafiançável, os parlamentares têm direito à audiência de custódia? Se sim, quem realizará a audiência? Ao “resolver sobre a prisão”, a respectiva Casa Legislativa dá a palavra final sobre a manutenção da prisão ou esse papel é exclusivo da autoridade judicial com competência para julgar o parlamentar?
Essas são as questões que se pretende analisar nesse texto. Para tanto, iremos examinar: (a) natureza jurídica da prisão em flagrante; (b) prazo para a realização e prisões sujeitas à audiência de custódia; e (c) prisão de parlamentares como ato complexo.
NATUREZA JURÍDICA DA PRISÃO EM FLAGRANTE
A doutrina brasileira costumava tratar a prisão em flagrante como uma medida cautelar. Hodiernamente, porém, especialmente após a reforma processual penal de 2011, tem-se entendido que a prisão em flagrante tem natureza precautelar de caráter pessoal. Assim o é porque ela não visa assegurar o resultado útil do processo, mas, sim, (a) fazer cessar o delito que está ocorrendo (e demais hipóteses do art. 302 do CPP) e (b) colocar o flagranteado à disposição do juízo competente para avalição da necessidade de aplicação de (aí sim) alguma medida cautelar.
Assim, em até 24 horas após a prisão, o juiz deverá realizar audiência de custódia com a presença do acusado, acompanhado de seu advogado e o membro do Ministério Público. Nessa audiência, o juiz decidirá sobre (a) o relaxamento da prisão ilegal; (b) a conversão da prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (c) a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança.
Desse modo, não há que se falar em manutenção da prisão de qualquer pessoa por prazo superior a 24 horas, sob o fundamento de “estar preso em flagrante”. Isso porque esse não é um título judicial suficiente – notadamente se se considerar que a prisão em flagrante pode ser realizada por qualquer do povo, nos termos do art. 301 do CPP – o que evidencia, mais uma vez, o caráter precário e precautelar da medida.
Dito isso, agora se faz necessário breve passagem sobre a audiência de custódia.
PRAZO PARA REALIZAÇÃO E PRISÕES SUJEITAS À AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Por muitos anos o Poder Legislativo não exerceu o seu papel para positivar a obrigatoriedade das audiências de custódia no Brasil, apesar de haver previsão expressa na Convenção Americana de Direitos Humanos. Essa Convenção, de status supralegal, estatui que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”.
Após algumas decisões no âmbito do Supremo Tribunal Federal, finalmente, adveio a Lei n.º 13.964, de 2019, trazendo previsão expressa da audiência de custódia, no prazo máximo de 24 horas após, a realização da prisão.
Apesar de o art. 310 do CPP prever apenas que a audiência de custódia seja realizada nos casos de prisão em flagrante, uma leitura mais atenta do art. 287, bem como do art. 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos, nota-se sua obrigatoriedade em toda e qualquer tipo de prisão – seja ela em flagrante, temporária ou preventiva e/ou determinada por juiz de primeira instância ou tribunal superior. Vale dizer, a audiência de custódia se aplica também aos parlamentares presos em flagrante delito e na forma legal.
PRISÃO DE PARLAMENTARES: ATO COMPLEXO
Quando se trata de prisão determinada por juiz de primeira instância ou outro tribunal competente para julgar autoridade com foro por prerrogativa de função, a competência para a realização da audiência de custódia e os
contornos dela decorrentes não apresentam grande controvérsia. O dilema ocorre quando há necessidade de prisão de membros do Congresso Nacional.
Conforme previsto no § 2º do art. 53, da Constituição Federal, desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. E, nessa hipótese, os autos devem ser remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. Trata-se da chamada freedom from arrest, pela parte da doutrina chega a defender que essa imunidade proibiria, inclusive, a prisão preventiva e/ou temporária de membros do Congresso Nacional. Ousamos discordar.
A imunidade parlamentar não pode ser confundida com privilégio ao indivíduo que está exercendo o mandato popular, antes deve assegurar o livre exercício regular do mandato e prevenir contra ameaças ao funcionamento normal do Poder Legislativo.
Conforme já explicitado acima, hoje não é mais possível se falar em “manutenção da prisão em flagrante por prazo superior a 24 horas”. A Convenção Americana de Direitos Humanos e o art. 310 do CPP exigem a realização de audiência de custódia onde o juiz decida sobre (a) o relaxamento da prisão ilegal; (b) a conversão da prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (c) a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança.
Desse modo, entendemos que, mesmo tratando-se de congressistas, é possível a decretação de prisão preventiva em audiência de custódia após o flagrante, se presente as hipóteses autorizadoras.
Ocorre que, no caso dos parlamentares, por expressa ressalva constitucional, essa prisão preventiva só se aperfeiçoa juridicamente após decisão da Câmara ou Senado, pelo voto da maioria dos seus membros – “para que resolvam sobre a prisão”. Trata-se de uma espécie de ato complexo em âmbito de processo penal, que resulta da manifestação de vontade de dois órgãos distintos: (a) primeiro, o Poder Judiciário, em audiência de custódia, faz uma análise técnico-jurídica e verificando estarem presentes os requisitos da prisão preventiva pode decretar a prisão do parlamentar – decisão essa que fica suspensa; e (b) depois, o Poder Legislativo através da Casa respectiva faz uma análise política e resolve sobre a prisão do congressista. As respectivas vontades se fundam para formar um único ato.
Essa situação – ato complexo no processo penal – não é uma exclusividade da atividade parlamentar. Outro caso no direito brasileiro é a necessidade de autorização da Câmara do Deputados – CD para o recebimento de denúncia oferecida pela Procuradoria Geral da República – PGR contra o Presidente da República por prática de crime comum.
Uma vez ofertada a denúncia pela PGR, o Supremo Tribunal Federal – STF precisa enviar o feito à CD. Então o Presidente deste órgão parlamentar encaminha Notificação ao Presidente da República, bem como remete peça acusatória para a Comissão de Constituição e Justiça – CCJ. Após análise pela CCJ – na forma do art. 217, Regimento Interno da CD – é feita a votação pelo Plenário da CD. Para que seja autorizado recebimento da denúncia são necessários os votos de 2/3 dos deputados (342). Alcançado esse quórum, a exordial acusatória segue para a análise do plenário do Supremo Tribunal Federal. Naquela Corte haverá, então, uma segunda decisão do Estado sobre o recebimento ou da denúncia.
Outros exemplos de atos complexos no processo penal são: (a) a antiga forma de arquivamento do Inquérito Policial (art. 28, CPP, redação original), na qual se o juiz não concordasse com o arquivamento promovido pelo Ministério Público, deveria enviar os autos do Procurador Geral de Justiça; e (b) atos que demandem a atuação do Ministério Público como fiscal da lei na causa criminal.
Diante disso, conclui-se que a decretação de prisão preventiva de parlamentares é ato complexo e que não se afigura estranha ao processo penal brasileiro essa agregação de atuação de entes estatais para que se confirme a validade de alguns atos do feito criminal. Assim, a expressão ““resolva sobre a prisão” está calcada nessa possibilidade legal de complexidade do ato da administração pública – nela compreendida os três poderes estatais – e configura a palavra final sobre a manutenção ou não da prisão.
*Philipe Benoni é advogado criminalista, sócio da Philipe Benoni Advogados Associados. Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM, regional Distrito Federal – ABRACRIM DF.
*Fernando Parente é advogado Criminalista, sócio da Guimarães Parente Advogados. Professor de Processo Penal no Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extensão – IDP. Presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM, regional Distrito Federal – ABRACRIM DF. Doutorando em Processo Penal na Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.