Piada de mau gosto

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Imaginemos que o presidente Jair Bolsonaro tivesse vindo a público defender a abolição do politicamente correto, propondo revogar as sanções de reprovação social – em alguns casos, a penalização criminal – decorrentes do uso de palavras depreciativas dirigidas a setores, grupos ou indivíduos, em razão de sua condição étnica, religiosa ou decorrente de preferência sexual ou insuficiência física ou mental. Não tenho dúvida de que a imprensa, nacional e internacional, lhe cairia de pau em cima, voltando a qualificá-lo de fascista, de nazista mesmo, por permitir a troça (o conteúdo essencial das piadas) de grupos minoritários ou mais vulneráveis.

Mas quem levantou essa reprovável proposição não foi Bolsonaro, mas o possível candidato à Presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva. Lula deveria, no mínimo, ser criticado por seu próprio partido, que nunca achou que ser nordestino deve ser objeto de chacota. Mas, como sempre, o PT evita tecer comentários sobre o que diga de impróprio o seu líder.

Em recente entrevista a ‘youtubers’, destinada a atrair o eleitorado mais jovem e a reforçar sua presença nas redes sociais e no ambiente digital, Lula fez uma explícita defesa do ‘bullying’ verbal (pois disso se tratam as chamadas piadas de ‘mau gosto’) cujo efeito é humilhar, quando não intimidar ou caluniar. Se Lula quer que se abram as portas para permitir chacotas contra os nordestinos, é porque acha que não haveria mal contá-las de negros, judeus, de deficientes físicos e as relacionadas a gênero.

As palavras de Lula, no YouTube foram: “Aí, sim, a gente vai ter o mundo feliz: um cara contando piada de nordestino e eu rindo, eu contando piada de outras pessoas e elas rindo. Está proibido contar piada, o mundo está chato, o mundo está pesado. Todas as piadas agora viraram politicamente erradas, então não tem mais graça”. Ficar feliz à custa da humilhação de terceiros é próprio de espíritos limitados.

Há onze anos, em sua coluna na Folha de São Paulo (de 18.5.2011), o jornalista e cientista social Marcelo Coelho elaborou sobre o tema. Observou que em suas versões mais extremadas, o ‘politicamente correto’ poderia representar uma interdição ao pensamento, uma política ideológica, mas que ser “politicamente incorreto”, no Brasil, era motivo de orgulho: “Todo pateta com pretensões à originalidade e à ironia toma a iniciativa de se dizer “incorreto” –e com isso se vê autorizado a abrir seu destampatório contra as mulheres, os gays, os negros, os índios e quem mais ele conseguir”. O “politicamente incorreto” não passaria, na maioria das vezes, banalidade e estupidez, reproduzindo “preconceitos antiquíssimos como se fossem novidades cintilantes: “Mulheres são burras!” “Ser contra a guerra é viadagem!” “Polícia tem de dar porrada!” “Bolsa Família serve para engordar vagabundo!” “Nordestino é atrasado!” “Criança só endireita no couro!”

Comentários dessa natureza fazem parte do que nos EUA de designa por “discurso do ódio” (hate speech), cuja característica fundamental é a incapacidade de defesa do destinatário. A depreciação decorrente desse tipo de manifestação não convida ao diálogo ou ao esclarecimento, mas à frustração e ao acirramento do conflito.

O debate político e acadêmico deveria focar na questão dos limites entre a liberdade de expressão e o discurso do ódio (ainda que na forma das piadas que o Sr.Lula acha engraçadas). A questão chave relaciona-se a preconceitos e o reforço de estereótipos. Quando o discurso do ódio se desenvolve sistematicamente, ele pode se tornar socialmente aceitável, abrindo caminho para a discriminação de pessoas ou grupos, e mesmo para a opressão e mesmo a sua supressão.

É lamentável, portanto, que na sociedade brasileira haja líderes, na direita ou na esquerda, que tratem de assunto tão sério de maneira leviana. No ambiente de polarização política em que vivemos, o discurso político trata frequentemente de reforçar as diferenças, transformando adversários em inimigos. Não é disso que o Brasil precisa.

Pedro Luiz Rodrigues é jornalista e diplomata.

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