Pedro Rogério Moreira

Passeio no Jardim Botânico

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13 de setembro de 2019 – Se me perguntassem: – Quem é o Patrono da Saúde Pública no Brasil? Responderia sem pestanejar: Oswaldo Cruz. Erraria feio. É o Doutor Belisário Penna, filho do Visconde de Carandaí!

Foi a lição que aprendi hoje de manhã num passeio não programado por ruas do Rio. São, esses passeios de surpresa, os mais proveitosos ao espírito do viajante. Hospedado no Hotel de Trânsito da Marinha, na Lagoa, fui fazer a Mega-Sena acumulada numa lotérica da Rua Jardim Botânico. Perguntei à atendente se conhecia por ali uma massagista para me aliviar as dores de uma distensão muscular sofrida de madrugada ao me espreguiçar na cama. Ela me indicou a Jane, numa vila simpática da Rua Lopes Quintas. Quando abri o portão da vila, um gato cinza atravessou-me o caminho e seguiu reto à frente, indo se esconder atrás de um vaso enorme numa espécie de pracinha, ponto final da vila. Era a morada da Jane. Felizmente (como eu veria depois), ela não estava em casa, e resolvi então subir a Lopes Quintas, rua que não percorria há décadas desde que deixei a TV Globo.

O prédio da emissora, que apelidaram de Vênus Platinada por ter as fileiras de janelas de um aço muito bem escovado, mantém-se o mesmo, com algumas modificações ditadas pela segurança patrimonial diante da violência urbana carioca.

Busquei com o olhar da sem-vergonhice um local muito importante para os repórteres da Globo naquela época: o bar onde bebíamos escondidos. O Calamares não existe mais. E se existisse, eu não veria ali o Borjalo tomando seus traçados (para os repórteres jovens, Cinzano com cachaça), pois o talentoso artista gráfico, diretor artístico da Globo, morreu muito antes da extinção do bar. Ao lado, porém, está de pé o prédio onde moravam o músico Jards Macalé e a filha do governador de Minas Francelino Pereira. Uma tarde encontrei Francelino desolado na calçada. O que foi? Uma derrota da Arena? Nada disto, ele fora visitar a filha e na sala do apartamento não havia poltronas ou cadeiras, só pufs pelo chão. “Você pode entender uma coisa destas?”  Ora, governador, é a modernidade dos casais jovens.  Seu genro é uma figuraça e sua filha, como boa mineira, obedece ao marido!  – respondi-lhe mais ou menos isto. Não o convenci, porque anos adiante ele chegou a comentar o caso comigo, ainda deplorando a ausência de sofás para as visitas na casa da filha.

Do outro lado do imponente prédio da emissora, entrei pela primeira vez na Igreja da Divina Providência. Incrível! Tantos anos na Globo e nunca havia feito sequer o Nome do Pai na igreja defronte ao meu local de trabalho!

Ao entrar hoje defrontei-me com um Santíssimo lindo, irradiando seu esplendor dourado sobre o altar na semi-escuridão da nave. Desconhecia até que atrás da igreja existe um colégio. E quantas outras coisas sobre aquela rua tão simpática eu desconhecia, porque não lhes prestava atenção. A avidez dos jovens repórteres só presta atenção na pauta. Não é ruim, mas é falho. Há muitas vilas na rua, edificações características da cena urbana carioca desde o século 18, ou até antes desta época.

Continuando o passeio, dei meia-volta e entrei pela Rua Visconde de Carandaí, onde aprendi o nome do verdadeiro patrono da saúde pública do Brasil nos dizeres da placa. Curiosa placa, porque os dizeres são sobre o filho do homenageado com a denominação da rua. Nada se diz sobre o Visconde, a importância histórica dele é ser pai do doutor Belisário. Exímio redator de placas!

Ruazinha, a Visconde de Carandaí, de uns duzentos metros, bucólica, mostrando ao olhar curioso algumas casas do tipo daquelas em que Machado de Assis escondia  personagens de seus contos, um ex-padre, uma solteirona solitária… Tenho uma vaga lembrança de que o escritor do bulício da Rua do Ouvidor, da tranquilidade dos Altos da Tijuca, dos iluminados palacetes do Flamengo e Botafogo citou as lonjuras do Jardim Botânico e da Gávea em algum de seus escritos.

A Visconde de Carandaí desemboca na Rua Pacheco Leão e na continuação dela, a Von Martius, este eu sei que foi um botânico. Identifiquei o casarão onde se instalava o Globo Repórter dirigido pelo talentoso cineasta Paulo Gil Soares nos anos 70 e 80. Boas lições de dramaturgia jornalística ouvi dele, mas eu era imaturo e não aprendi. Desculpe, Paulo Gil.

Estaquei diante da velha portaria da TV Globo,  entrada do elenco de astros e estrelas das novelas então gravadas nos estúdios da Von Martius e também utilizada pelo Jornalismo para a saída dos carros de reportagem. De tudo isto eu recordei sem nostalgia, e sim com o olhar despossuído de adjetivos de velho repórter.

Largo Otto Lara Resende, no Rio de Janeiro.

No retorno ao hotel, fui encontrar outra boa surpresa na esquina da Pacheco Leão com a Rua Jardim Botânico: o enorme calçadão, com bares e tendas de floriculturas, agora chama-se Largo Otto Lara Resende! O escritor ganhou até uma estátua em tamanho natural. Otto acharia muita graça: está de pé, com aquele meio sorriso que sempre andava em sua boca, ao lado de uma mesa com telefone e uma cadeira, tudo integrando a obra do artista escultor. Mas a mesa de ferro, quando ali cheguei, era ocupada por um anotador de jogo do bicho. Uma simpática auxiliar do “ponto” se prontificou a bater com meu celular a foto do visitante ao lado de Otto.

– Você conheceu o escritor? – perguntei.

– Não sei, mas se ele apostava, conheci. Eu estava aqui no dia da inauguração.

Não sei se Otto jogava no bicho.

Um senhor aposentado que ia apostar nos interrompeu:

– Eu conheci de vista! Ele ia à agência dos correios ali adiante…

Otto foi um notável postalista, escrevia cartas a torto e a direito, tenho algumas, mesmo ele trabalhando no sétimo andar e eu no segundo da Vênus Platinada. O negócio dele era escrever.

Aproveitando a ensancha oportunosa oferecida pela presença do bicheiro ao lado do Otto, e influenciado por uma aposentada que revelou só jogar no ano do seu natalício, fiz uma aposta de 20 reais na data do meu, 1946, elefante.

Prosseguindo a rota para a Lagoa, a fiz pela rua por onde corre o Rio dos Macacos, que desce fresco do Maciço da Tijuca e ali ao lado do Jóquei Clube se mostra já poluído pelos moradores do Horto. Numa esquina, o transeunte vê outra homenagem estatuária: é o Chacrinha com sua buzina famosa. Este, infelizmente, não tive oportunidade de conhecer.

Certamente irão lembrar os prefeitos cariocas de erigirem estátuas de outras celebridades da TV Globo, cuja presença está agora indelevelmente ligada ao bairro surgido com a criação do Jardim Botânico por Dom João VI. Merecem o bronze o doutor Roberto Marinho, o Walter Clark, o Boni daqui a algumas dezenas de anos, pois graças a Deus está firme como as palmeiras imperiais da notável iniciativa do príncipe regente. A do Armando Nogueira poderá ser erigida em outro bairro, diante da antiga sede do seu glorioso Botafogo de Futebol e Regatas, ali naquela avenida onde fica o hospital dos doidos, o Pinel.

Notável passeio realizei, sem melancolia, sem nostalgias… Gozei só alegrias e boas recordações!

À tarde, voltei ao Largo do Otto para conferir com o bicheiro o palpite no elefante. Água de barrela. Mas ainda tem a Mega-Sena.

E agora à noite, no quarto do Hotel da Marinha, pesquisando o Google, soube que o doutor Belisário Penna é natural de Barbacena, portanto co-estaduano meu e dos dois amigos citados, Borjalo, de Pitangui, e Otto Lara Resende, de São João del Rey. Como Carandaí é uma pequena cidade próxima a Barbacena, suponho que o Visconde pai do Patrono da Saúde Pública tenha nascido naquele sítio da Serra da Mantiqueira.

Portanto, acabei fazendo pelas ruas do Jardim Botânico um passeio pelo meu ecúmeno sentimental.

Quem escreve em confissão acaba mesmo dando voltas em torno do seu próprio umbigo.

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