Pacta sunt servanda
Os diplomatas integrantes da confraria da Mesa são gente boa. Gente normal.
Quiçá eram outrora mais polêmicos, no bom sentido da palavra. Ilustres tipos faceiros, que podiam até tomar Rhum Creosotado. Y muchas otras cositas mas.
E viviam metidos em grandes trapalhadas.
Nos anais do rico folclore do Itamaraty há registros de personagens como o diplomata João Batista Soares de Pina sobre os quais são conhecidas histórias memoráveis, como aquela que ele que ele protagonizou em Moscou e que o escritor e cronista Ruy Castro contou no livro “A noite do meu bem”.
“Em meados de 1947, o diplomata João Batista Soares de Pina, secretário do Brasil na União Soviética – Pina Gomalina para os amigos -, armou uma confusão num salão do Hotel Nacional de Moscou. Com várias vodcas acima do nível da humanidade, ele discordou de um violinista da orquestra quanto à execução por este de “O voo do besouro”, de Rimsky-Korsakov. A querela converteu-se em troca de insultos, tabefes e empurrões, que sobraram também para o harpista, cujo instrumento caiu no chão. De repente havia três litigantes rolando sobre o barquete: Pina, o violinista e a harpa. O maitre tentou separá-los e apanhou também.
Os garçons, os demais músicos e bebuns avulsos entraram na briga, alguns a favor de Pina, outros contra, com flautas e batutas sendo usadas como armas. Alguém chamou a polícia e, numa situação desprimorosa para um representante estrangeiro, Pina foi levado dali pedalando o ar e dando bananas para o Komintern, o Kominform, a Cheka, o Politburo e outras instituições locais. Atiram-no no xilindró e avisaram a Embaixada.”
Há muitos anos, um chefe querido me contou outra peripécia do famoso Pina Gomalina.
Reza a estória que Pina estava servindo num país sul-americano, e tinha ido a uma recepção comemorativa de Festa nacional na Residência de uma Embaixada de país amigo.
Depois de perambular pelos jardins da casa, cumprimentar colegas e autoridades locais, trocando com eles um dedo de prosa aqui e acolá, sempre sorvendo sua habitual birita, Pina vislumbrou, entre os convivas, Isidoro Arango, um diplomata colombiano conhecido seu. Não era mau sujeito, mas tinha o defeito de, quando bebia além da conta, se tornava excessivamente loquaz, um verdadeiro “chato de galocha”, como de resto soe acontecer com os bêbados. Acho que o bebum não gosta da conversa de outro de sua espécie. A conferir.
Pina sabia disso e, ao vê-lo num grupo, já bem animado com seu copo de Scotch whisky na mão, tentou esgueirar-se e fugir da prosa copiosa do amigo. Tarde demais. O colega colombiano já o avistara e vinha célere em sua direção no verdejante relvado da Residência, com uma dose renovada de Scotch no seu copo high ball.
Isidoro o alcançou e disparou efusivas saudações. Os dois ficaram por ali, bebericando e conversando fiado, até que o diplomata colombiano derretendo-se em palavras de afeto a Pina, disse-lhe que, sendo amigos tão fraternais, era preciso consolidar tamanha amizade de uma forma definitiva.
Ato contínuo e diante de um Pina espantado, sacou de um pequeno canivete do bolso e propôs que os dois fizessem um corte em suas mãos e juntassem o sangue que daí resultasse escorrer.
– “Pina, carajo, Tú eres mi mejor amigo y tenemos que sellar esa nuestra amistad con un pacto. Un pacto de sangre”, aduziu.
Nosso Pina era pinguço, mas não era louco, e, num átimo de sobriedade, arregalou os olhos e fez-se de súbito lívido, horrorizado ante a perspectiva assombradora de ver sua mão talhada e ensanguentada. Refletiu uns brevíssimos instantes e, nem bem totalmente refeito do choque, consegui balbuciar ao Isidoro:
– “Oiga, Isidoro, no me gusta ni um poco esa cosa de sangre. Por eso, propongo una alternativa para nuestro pacto”.
Acatada a alternativa brasileira, momentos depois alguns convidados que circulavam pela parte menos iluminada do jardim puderam assistir a uma cena inusitada: viram quando Isidoro Arango arregaçou sua calça até joelho e Pina desferiu um jato de urina na perna do colombiano. Em seguida, coube ao nosso personagem levantar sua calça e receber na perna a urina de seu amigo.
Estava, portanto, selado, numa liturgia pouco ortodoxa, mas nem por isso menos solene para seus protagonistas, o pacto de amizade entre Soares de Pina e Isidoro Arango.
A festa seguia e os dois emergiram da penumbra do jardim, às gargalhadas, e foram em busca de mais uma dose do inebriante Scotch, deixando os demais convivas intrigados com as bainhas das calças dos dois visivelmente enxarcadas.
Pacta sunt servanda.