Sérgio Moura

Os teergardenses chegam à Terra

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Astrônomos, recentemente, descobriram dois planetas, batizados Teergarden B e C, que ficam a cerca de 118,259 trilhões de quilômetros (12,5 anos-luz) da Terra, e que podem ter vida. Infelizmente, só poderão ser mais bem estudados na próxima década, quando se espera haverá telescópios gigantes que permitirão recolher imagens diretamente deles. Até lá, ficamos de sobreaviso.

E se lá houver vida? A sonda Voyager, lançada em 1979, levou 40 anos para, em dezembro de 2018, atingir 19 bilhões de quilômetros da Terra, 0,016% da distância entre a Terra e os Teergardens.

Na atual velocidade, a Voyager poderia chegar aos Teergardens daqui a 248.966 anos, quando os dados que ela carrega sobre a Terra seriam decifrados pelos teergardenses. Nessa altura, com as atuais previsões catastróficas dos nossos climatologistas, a vida na Terra estaria extinta. Seria só um repositório de documentos e monumentos, que os teergardenses observariam e estudariam minuciosamente quando aqui chegassem, da mesma forma que estudamos Sócrates, Platão e outros filósofos gregos.

Nossa percepção dos costumes e teorias filosóficas da Grécia Antiga chocam-se com nossa prática. Por exemplo, não se coadunam com nossa cultura as sugestões de Platão, através do Ateniense Anônimo, de que Magnésia, a cidade para a qual este e um amigo cretense sugeriam leis, só viesse a ter, no máximo, 5.040 famílias, e que todos os habitantes de mais de 10 anos de idade devessem abandonar a cidade.

Os curiosos teergardenses que resolvessem vir à Terra possivelmente teriam aqui reação semelhante em 205985: ao finalmente quebrar o código secreto que um país chamado República Federativa do Brasil usava para seus habitantes se comunicarem, que intitulavam “português”, deparar-se-iam com as primeiras quatro linhas do documento “Constituição Federal”, que dizia: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:… III – a dignidade da pessoa humana”.

A essa altura, à la Champollion, e com ajuda de um outro documento chamado Michaelis, já teriam aprendido o significado da palavra “pessoa” (subs., ser humano) e também a de “humano” (adj., relativo à natureza do homem ou que denota compaixão). Notando a erudição em outros escritos em português, os teergardenses logo concluiriam que a expressão correspondente “ser humano humano” não fazia sentido e, que, portanto, “pessoa humana” só podia referir-se a exclusão de pessoas desumanas,  cruéis, sem compaixão, de uma vida com dignidade e, imediatamente, se perguntariam: como a Constituição de um país que chamavam de Brasil, com seus 78 direitos,  podia discriminar pessoas que não têm compaixão? Seriam tão ciosos da bondade, solidariedade, amor e harmonia em sociedade a ponto de retirar do seu convívio, permanentemente, as pessoas cruéis com outras e com os animais?

Achariam que sim, claro, estava escrito, mas, como seria essa exclusão se não havia por lá prisão perpétua nem pena de morte?  Ressuscitariam essas pessoas como bondosas embora ainda estivessem vivas? Como? Como só as pessoas que viviam nesse país Brasil conseguiam essa proeza? E por que não havia uma patente que garantisse essa exclusividade? “Nem nossa adiantada ciência”, diriam os teergardenses, “consegue ressuscitar pessoas vivas.”

O mistério persistiria pelos próximos anos-luz. Sem conseguir racionalmente explicar o fenômeno, estudiosos e filósofos de Teergarden continuariam indefinidamente perplexos com a inteligência dos que se chamavam “brasileiros” e erigiriam monumentos em sua memória, como nós hoje nos surpreendemos com os filósofos da Grécia Antiga. E, talvez, o sobre-humano da afirmação constitucional até fizesse com que alguns teergardenses se unissem em um culto para nos adorar.

Sérgio Moura é advogado, ex-executivo da IBM Brasil, ex-consultor em formulação de políticas públicas, autor dos livros Chega de Pobreza (edição do autor, 2006) e Podemos ser prósperos – se os políticos deixarem (edição do autor, 2018), Fellow do Institute of Brazilian Issues da George Washington University, Oficial da Ordem do Mérito Brasília e detentor da Medalha do Pacificador

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