Tiago de Vasconcelos

O STF abusou. E a imprensa cala

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Manifestação a favor de golpe é imbecilidade, mas é crime? Decisões do STF podem afetar a liberdade da mesma imprensa que hoje comemora o momento político.

Na terça-feira (16/jun), a Polícia Federal cumpriu ordens do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e realizou busca e apreensão contra youtubers, jornalista, deputado federal, empresários… e não houve repercussão negativa nos meios de comunicação. Os investigados na operação foram embolados sob a alcunha de “alvos da PF em operação contra atos antidemocráticos”, assim como em 27 de maio, quando foi realizada a “operação contra bolsonaristas” no “inquérito das fake news”. Até agora não se discutiu qualquer impacto negativo dessas decisões para a liberdade de imprensa e expressão. A situação é grave.

Não é sequer questionado que uma manifestação, por mais imbecil que seja, possa ser taxada de “antidemocrática” e isso justifique a apreensão de computadores de jornalista com registro no Ministério do Trabalho ou uma batida da polícia em gabinete de parlamentar federal. Também mal foi discutido o que significa para jornalistas investigativos, comediantes ou até comentaristas de Youtube, que uma investigação possa ser criada por um tribunal, após ser alvo de críticas.

A explicação pelo silêncio, como sempre, é o filtro que mancha toda discussão recente: o amor e ódio em torno de Jair Bolsonaro.

É nítida a paixão com qual o tema “Bolsonaro” é tratado nos meios de comunicação e agora, na Justiça. O presidente já deixou claro seu antagonismo em relação à mídia, cujos integrantes respondem da mesma forma. Isso pode explicar a relutância de defensores da liberdade em criticar decisões judiciais que devem ter ramificações sombrias no Brasil. Parece que foi esquecido que o presidente passa, mas a lei é para sempre. E vale para todos; de extremistas a centristas, passando por liberais, conservadores, defensores do meio-ambiente, da indústria, das minorias ou da Igreja.

Protesto do MST que "acusa os Três Poderes" pode ser considerada inconstitucional.

Protesto do MST que “acusa os Três Poderes” pode ser considerado inconstitucional.

Problema 1: ‘antidemocrático’

Atos que pedem intervenção militar claramente não ressonam com a maioria. Poderiam facilmente ser entendidos como o equivalente a pedidos de “revolução” ou “acusações” contra os Três Poderes, de grupos como o MST. São manifestações de opiniões, como todas as outras. E sempre manifestáveis, como deveriam ser. Sempre. É a melhor forma de abordar qualquer opinião. Porque se você não concorda, tudo bem, pode se expressar também.

Protesto de rua em 2013 acusa Lula de ser "chefe de quadrilha", mas o petista não foi condenado por isso, e sim por corrupção. O protesto é ilegal?

Protesto de rua em 2013 acusa Lula de ser “chefe de quadrilha”, mas o petista não foi condenado por isso, e sim por corrupção. O protesto é ilegal?

No caso de um cidadão comum é compreensível que não se consiga “relevar” protestos que pedem o fechamento do STF e do Congresso, apesar de serem equiparáveis a protestos de extrema esquerda, ou de anarquistas, que na prática pedem as mesmas coisas. Mas, no mínimo, os jornalistas informados da imprensa tradicional deveriam se preocupar com o precedente criado pelo STF. No “inquérito das fake news”, a Corte decidiu que posts na internet com mensagens raivosas contra o STF e seus familiares são uma “afronta à Constituição” e “não estão protegidas pela liberdade de expressão”.

Imaginemos um exemplo esdrúxulo. Em 1993, o Brasil foi às urnas confirmar a forma e sistema de governo. O presidencialismo foi o vencedor, assim como a República (86%). Se a interpretação de que se manifestar contra a forma de governo é antidemocrático e inconstitucional, os brasileiros que defendem até hoje a monarquia deveriam ser presos. Ora, está escrito na Constituição que o Brasil é uma república federativa. Quem defende uma “república popular” está cometendo crime? É ilegal querer mudar o sistema econômico e político para socialismo? E xingar ministro do STF enquanto se exige revolução, é hediondo?

O senador Renan Calheiros é alvo de diversas acusações e investigações, mas até hoje não foi condenado. Cartaz com pedidos de cadeia para o emedebista é ilegal?

O senador Renan Calheiros é alvo de diversas acusações e investigações, mas até hoje não foi condenado. Cartaz com pedidos de cadeia para o emedebista é ilegal?

Problema 2: linha tênue

A operação que investiga as manifestações foi pedida pela Procuradoria-Geral da República a Alexandre de Moraes, que é relator do caso no STF. O inquérito tem como objetivo investigar o suposto financiamento ilegal de “atos antidemocráticos”, mas muitos dos alvos se misturaram com outro inquérito, o das fake news. Tem muita coisa misturada. Moraes também é presidente do inquérito que investiga suposta rede que financia e propaga notícias falsas. É uma espécie de ministro-delegado que determina o curso da investigação, além de ser o relator desse caso, portanto julga os pedidos dos investigados, por exemplo. Ambos os processos tramitam sob segredo de Justiça. E os outros ministros do STF sancionaram tudo isso, apenas o ministro Marco Aurélio foi contrário.

No âmbito da operação dos atos, a PF fez busca e apreensão na sede do blog FolhaPolítica.org. O site se descreve como “conservador e de direita”, já o PT o descreve como “site de fake news”. O site do Folha Política, na prática, é um replicador de notícias de veículos de imprensa, mas com filtro ideológico. Qualquer informação é publicada, já que não há investigação de denúncias ou apuração de pautas, como fazem – ou deveriam fazer – veículos e jornalistas. Tudo requentado com um tempero político. Já o canal no Youtube, o grande sucesso do Folha Política, são vídeos de imagens fotográficas noticiosas, com a narração do texto dos posts. Para alguns, o tempero é apenas um ponto de vista, para outros, como o ministro-delegado, é crime. Vamos tentar entender.

A empresa que gerencia o blog Folha Política pertence a um casal. Ele é filho de militar e, enturmado com o PRTB do general Hamilton Mourão e eventualmente o PSL, conseguiu emplacar alguns bicos de serviços de assessoria em redes sociais, para levantar a bola de políticos na internet. Ninguém inventou essa roda, é prática comum nos meios políticos e na comunicação. A história é conhecida, foi publicada no UOL e Buzzfeed Brasil, que também acusam o site de propagar notícias falsas. Quem consome apenas UOL e Buzzfeed, concorda com eles. Quem consome só Folha Política, se alinha ao blog.

Veículos tradicionais não consideram iniciativas como o Folha Política como parte da imprensa, da mídia. De fato, sites desse tipo não seguem os padrões jornalísticos de veículos tradicionais. Nem querem isso. Muitas vezes sequer têm jornalistas na equipe, como é o caso do Folha Política, e também não têm preocupações em corrigir eventuais erros ou atualizar informações. A filosofia desses tipos de sites é oferecer qualquer migalha de informação ao seu público. Não importa a qualidade, procedência ou processo: o que vale é publicar. Qualquer adulto, dentro de suas capacidades mentais, consegue fazer essa distinção. Tem gente, inclusive, que prefere tratar notícias dessa forma, consumindo todo tipo de informação, para chegar às próprias conclusões.

O resultado disso é um ponto de vista muito diferente da informação processada por sites como o G1, do grupo Globo. Mas as práticas são semelhantes. O Folha Política inunda seus seguidores com conteúdo filtrado por eles, assim como veículos de imprensa. A diferença é a óbvia qualidade da notícia, mas isso deveria caber apenas ao consumidor determinar. Não pode ser caso no STF. A lei penal contém ferramentas que podem punir opiniões ou falas que são injúrias, calúnias e difamações. O resto é válido.

O fato é que o canal Folha Política no Youtube acumula mais inscritos que os canais do Estadão, Folha de S.Paulo, UOL e O Globo somados. São mais de 2 milhões de inscritos no canal, cujos vídeos conquistam, em média, centenas de milhares de visualizações. Os principais veículos de imprensa mal passam dos 600 mil inscritos. Vídeos do Estadão no Youtube, por exemplo, sequer atingem mil visualizações, muito raramente alguns milhares. Mesmo vídeos de pautas queridas a alguns comunicadores, como o da prisão do ex-assessor de Flávio Bolsonaro Fabrício Queiroz, ontem, não chegou a 700 visualizações no canal do jornal O Estado de S.Paulo no Youtube. Pelo menos nessa plataforma de vídeos, há uma clara preferência.

Comparação entre os últimos vídeos dos canais do Estadão e Folha Política.

Comparação entre os últimos vídeos dos canais do Estadão e Folha Política.

Problema 3: mais informação é sempre melhor

A PF foi à casa da jornalista Camila Abdo e apreendeu seus computadores e celulares. A justificativa é que ela é “militante bolsonarista” e “incentivou protesto” contra o STF e o Congresso. E daí? Militantes partidários ocupam posições em redações desde os primórdios do jornalismo, independentemente de alinhamento ideológico. Não gostou do que foi dito por um jornalista? Não escute, siga outro perfil, leia outro texto, escreva sua própria opinião.

Até a agência Reuters, a maior do mundo, não vê problemas em operação policial contra jornalista. Só precisou ser bolsonarista. Foto: UOL/Captura

A imprensa de Gutenberg revolucionou a Humanidade justamente pela necessidade de que se espalhassem novas ideias e informações, antes reservadas à elite rica e educada. Foi inclusive o que permitiu que cientistas trocassem conhecimento e discutissem novas teorias, a maioria das quais foram descartadas.

É isso que acontece com conceitos ruins que são expostos à luz da liberdade de ideias e expressão: secam, morrem e são substituídos por outros, melhores. Ideias ruins só prosperam na escuridão da ignorância e da censura. Se a impressão de folhetos, livros e jornais dependesse da permissão de um juiz em 1490, ainda viveríamos o obscurantismo pré-renascentista.

Os inquéritos de Alexandre de Morares até agora não tiveram como alvo alguém da comunicação tradicional, veículo de imprensa importante, ou um dos seus “players”. Nenhuma grande agência de publicidade, ou megaempresa de assessoria, nem sequer algum gigante da tecnologia foi contemplado nas investigações do STF. Todas essas empresas têm práticas de financiamento muito parecidas, vendem anúncios e/ou assinaturas, e dominam o mercado da comunicação há muitos anos.

Uma investigação profunda sobre as conexões entre parlamentares e concessões de rádio e TV, grandes bancos e velhos jornalões, além dos veículos financiados por ex-presidiários da política e do setor bancário, talvez produziria impactos muito maiores na elucidação de fake news produzidas por “viés ideológico”. Mas essa investigação não traria tranquilidade a ninguém.

Ao mesmo tempo, a ausência de nomes mais conhecidos nos inquéritos de fake news pode ser explicado por um simples fato: Bolsonaro e sua base de apoio não têm ligações com a mídia tradicional, apesar do flerte com Record e SBT em 2018, que até rendeu ação no TSE. A aproximação com alguns poucos grandes veículos da TV veio mais tarde, quando o governo já estava enfrentando seus primeiros desafios. A mais recente aproximação foi a nomeação do deputado Fábio Faria (PSD-RN), que é casado com uma das filhas do empresário Sílvio Santos, dono do SBT. Os veículos que concorrem com o SBT destacaram a relação familiar, claro. Outra relação familiar, mas que chama pouca atenção, é a filha do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ),que trabalha na recém-lançada CNN Brasil. Ainda assim, o resultado da nova posse na Esplanada está por ser determinado. Parece que relações familiares são o de menos.

Por isso, o STF aparenta se apegar – por enquanto – a peixes pequenos, imaginando que absurdos na internet só podem ser escritos por pessoas sendo pagas, robôs replicadores e um grande esquema corrupto que financia tudo isso. Até agora, no entanto, não foram mostradas as provas que fundamentam os inquéritos, que correm sob segredo de Justiça. Apenas foram divulgadas mensagens postadas em perfis de redes sociais, algumas apenas pesadas e outras definitivamente criminosas. Mas nenhuma comprovação de que há um “esquema”, só mensagens raivosas.

Problema 4: isso é a internet

É possível detectar uma certa lógica por trás do espírito de Alexandre de Moraes. Movido pela suspeita de que asneiras tão absurdas ditas nas redes sociais só podem ter coordenação política, Moraes soltou os cachorros para cima do grupo político que suspeita estar mais próximo do suposto esquema.

Mas parece ter faltado compreensão do ministro do STF sobre a temática que investiga. Ele parece não ser usuário “raiz” de internet. Claramente o ministro não é da geração que usou mIRC e Napster. Não cruzava as salas de papo do UOL. Quem sabe, sabe.

Talvez a ira dos ministros do STF com o que o inquérito vem escavando nas redes sociais não seria tão intensa se eles tivessem maior experiência online. Todo mundo que é acostumado, sabe: em vez de ficar lendo os comentários, melhor voltar a trabalhar. É o que fazem todos os usuários de redes sociais e até as autoridades que não se sentam no Supremo.

É consenso entre todos os operadores da comunicação de que o governo se comunica mal. Muitos insistem, inclusive, que essa inabilidade se transformou numa deficiência insuperável. É possível também argumentar que Bolsonaro se elegeu sem a ajuda do dinheiro e apoio tradicionalmente necessários para se vencer uma eleição presidencial. Ele não teve de beijar os anéis da comunicação brasileira como tem sido o caso de todos os candidatos levados a sério desde a reabertura democrática no Brasil, em 1985. E agora ele governa da mesma forma.

Quando se trata de liberdade de expressão, é preciso conviver com opiniões contrárias, até mesmo aquelas que beiram a loucura. Sem opiniões ruins, é impossível identificar as boas. Mas a moda agora é dizer que a liberdade “tem limites”, como afirmaram ministros do STF e algumas dúzias de parlamentares, incluindo o presidente da CPMI das Fake News, senador Ângelo Coronel. Sim, óbvio. Esses limites já existem em lei. Todo o resto é arroubo autoritário que pretende reprimir o cidadão. É só ler a Declaração de Chapultepec, da qual o Brasil é signatário.

O que muitos dos palpiteiros de Twitter e politicólogos de fim de semana parecem não contemplar é que o precedente criado pelo STF pode atingir a todos os brasileiros, especialmente aqueles que se comunicam para sobreviver. Influencers e personalidades da internet, comediantes, escritores e artistas vivem de suas opiniões. Muitos aplaudem as operações da PF, que por enquanto se concentra em políticos e apoiadores do grupo político que é “racista, homofóbico, xenofóbico”, mas essas pessoas não estão sendo presas por racismo ou preconceito. São alvos das autoridades por falar do STF. No futuro, quem sabe, sejam outros a falar.

Tiago de Vasconcelos é jornalista e diretor do Diário do Poder

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