O setor elétrico e o lero-lero do ‘erro’

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Acompanhei com apreensão, dia 15 de fevereiro, a reunião do Pleno do Tribunal de Contas da União (TCU). O tema era a privatização da Eletrobras. Em sua pregação, o Ministro Vital do Rêgo argumentava em defesa da correção de um “erro gravíssimo” que, com sua equipe, teria descoberto. Com seus parcos conhecimentos do setor elétrico, o Ministro tentou mostrar que a produção das usinas da Eletrobras deveria ser valorada, ao longo do horizonte da concessão, a preços da reserva de capacidade, que poucos sabiam o que era.

Era difícil entender o que o Ministro tentava explicar. Mais difícil ainda era aceitar que os técnicos do TCU, que, dois meses antes, fizeram um preciso diagnóstico da crise recente, não tivessem mostrado o conceito correto. Mostraram. Pelo menos aos demais ministros.

Aliás, ficou evidente a falta de traquejo quanto ao significado da reserva de capacidade. Porém, a base dos argumentos do Ministro Vital do Rêgo, quando tratou dessa nova modalidade de comercialização, era até razoável. Estranhamente, suas conclusões foram equivocadas, a maioria, toscas.

Tente visualizar, caro leitor, o formato da curva de demanda de eletricidade ao longo de um dia. A demanda varia instantaneamente (o consumidor não avisa quando ligará ou desligará seus equipamentos), sem contar o fato de o montante utilizado mudar com o perfil da atividade econômica e com o comportamento e costumes dos usuários. Ex.: a demanda é muito maior entre 18 h e 21 h e muito menor na madrugada e nos fins de semana. A demanda também varia com a temperatura. Conclusão: como a oferta precisa atender à demanda, seja lá qual for sua composição e formato, construí-la, minuto a minuto, é desafio para poucos.

Além disso, cada fonte de geração possui características específicas que condicionam seu uso. A nuclear opera 90% do tempo (usina de base). Quando desligada, demora dias para a retomada de carga, além de ser uma tarefa com riscos não desprezíveis. Por isso, a nuclear só é desligada uma vez por ano, quando da substituição do combustível.

As hidrelétricas têm situação semelhante. São usinas de base. Operam entre 65 e 75% do tempo, algumas até mais, sobretudo aquelas com reservatório de acumulação. E tem uma vantagem importante em relação a qualquer outra fonte: um determinado percentual de sua potência pode ser utilizado como reserva girante (opera sem injetar energia na rede), a depender do valor da água. É o tipo de fonte que melhor responde às variações repentinas da demanda.

Há também as renováveis, como a eólica e a solar, que são intermitentes. A eólica produz entre 45 e 50% do tempo, e é muito difícil modelar quando a geração será interrompida por falta de vento. A solar produz durante as horas do dia em que há sol, na média algo entre 22 e 25% do tempo. Um detalhe: as fontes renováveis, que em 2005 tinham participação quase nula na matriz elétrica, atingirão mais de 25% já em 2025 e podem passar de 45% em 2030.

A completar tudo isso há ainda as termelétricas convencionais (gás natural, óleo diesel, óleo combustível e carvão). O uso delas é função do custo do combustível. As usinas a gás, nos EUA, operam na base, mas é evento economicamente inviável no Brasil. As térmicas a óleo são usadas apenas em situações muito excepcionais – no máximo 800 horas/ano.

Mas onde entra o mercado de reserva de capacidade, motivo do “erro gravíssimo”? A complexa operação de um sistema elétrico é explicada pela necessidade de “adaptar” ou tornar confiável a oferta de um produto cujo mix de fontes possui características bem distintas, como a intermitência (das renováveis) e a sazonalidade (das hidrelétricas). E tudo isso deve ser adequado a uma demanda que pode mudar instantaneamente.

Há, portanto, um risco implícito do lado da oferta. Assim, para mantê-la confiável, é prudente protegê-la com uma reserva, uma reserva de capacidade. É como se, para assegurar o atendimento da demanda, dadas as características da oferta, seja necessário um seguro. É por isso que o mercado de reserva de capacidade é também conhecido como mercado de confiabilidade.

Com efeito, no leilão realizado em dezembro de 2021 foram contratadas usinas a gás natural e a óleo diesel, algumas com preços acima de R$ 600/MWh, que parece elevado. Acho que foi nisso que pensou o ministro que descobriu o “erro gravíssimo”. Tais usinas, como qualquer seguro, operarão em situações muito excepcionais, numa média de 200 horas/ano. Assim, se forem contratados 1.000 MW médios, a receita anual das usinas seria R$ 6,3 bilhões. Contudo, o custo para os consumidores é da ordem de R$ 9/MWh. Parece razoável pagar 1,5% da tarifa por um seguro que tornará a oferta mais confiável.

Muitos já o praticam. Os hospitais, shopping centers, grandes hotéis e supermercados, mesmo que recebam energia da rede, mantêm, como reserva, seus geradores a diesel, e pagam por isso, ainda que não os utilizem.

O que achas? É possível usar os mais de 26.000 MW de hidrelétricas da Eletrobras como reserva de capacidade? Claro que não. As hidrelétricas operam na base. Fornecem muita flexibilidade para a construção da oferta, e devem ganhar por isso. Mas não significa que os ativos correspondentes devem ser assim precificados, tampouco que a reserva de capacidade venha a configurar um novo mercado. Longe disso.

Na prática, aceitar a descoberta do ministro do TCU seria a mesma coisa que precificar o caminhão a partir do custo do seu pneu reserva. Isto, sim, é um erro gravíssimo.

Por sorte e, por que não dizer, coragem dos demais ministros do TCU, o setor elétrico escapou de mais um vexame. No final, tudo não passou de um lero-lero conceitual. Mas há lero-leros que pegam, como a herança maldita, mais antiga, e a taxação do Sol, bem mais recente. Por isso são perigosos. E danosos.

Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e ex-diretor da Aneel.

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