Pedro Rogério Moreira

O perigo de ter um diário

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Meu pai, Vivaldi Moreira (1912-2001), foi um intelectual de província (presidente-perpétuo da Academia Mineira de Letras) e homem público, tendo sido magistrado do Tribunal de Contas de Minas desde 1949 até se aposentar pela idade aos setenta anos. Desde 1933, quando foi estudar na Faculdade Nacional de Direito, no Rio, manteve um diário íntimo. Seu amigo Magalhães Pinto, governador de Minas, dizia de provocação:

– Cuidado com o Vivaldi: ele tem um diário!

Ao morrer, Vivaldi Moreira pediu à família que interditasse o diário até o ano 2030. Vou abri-lo agora, só na parte referente à eleição de seu amigo Juscelino Kubitschek para o Governo de Minas, a entrada do ex-presidente na Academia Mineira de Letras e a sua derrota na Brasileira, numa deferência ao historiador e jornalista Lucas Figueiredo, ora escrevendo para a Companhia das Letras uma biografia em três volumes do mais amado dos nossos presidentes da República.

O filho pegou o vezo do pai desde que, repórter da TV Globo, acolheu a sugestão do saudoso Otto Lara Resende, com quem privava naquela emissora da qual o romancista era diretor. Ao saber que o jovem amigo estava sendo enviado como correspondente na Amazônia, em 1980, disse-me:

– Escreva tudo, anote, antes que a memória vá esbatendo os traços.

Iniciei a tarefa, interrompida em alguns anos; retomei-a na década de 1990 e só parei este ano, desgostoso quando me morreu um companheiro que tive nos últimos dezoito anos: o Marengo, o gato com o qual convivia e que me estimulou a escrever o diário, denominado A vida misteriosa dos gatos. Há muito intercalava o meu cotidiano profissional com os acontecimentos domésticos em torno do Marengo e dos gatos de rua que começaram a habitar o meu cenário de vida a partir de 1990 como morador da antiga Península dos Ministros. Não há mais nenhum ministro morando aqui na QL 12. Remanescem daquele tempo só os comandantes da Marinha e da Força Aérea, rebaixados da antiga titularidade ministerial pelo presidente Fernando Henrique Cardoso ao criar o Ministério da Defesa. Os gatos de rua continuam e eu continuo dando-lhes comida e água fresca, malgrado o protesto de alguns vizinhos que desconhecem a generosidade franciscana com que se deve tratar os animais.

Permanecem na Península apenas as residências oficiais dos presidentes das duas casas do Congresso e de alguns oficiais-generais da Marinha e da FAB. No que fez muito bem o presidente Fernando Collor, que mandou vender as casas ministeriais mas conservou a dos oficiais-generais, que não podem, por dever constitucional, tirar algum proveito financeiro em atividades civis, e os vencimentos deles não comportam o aluguel de uma moradia condigna.

Frequentei muitas daquelas casas ministeriais e congressuais, como visitante. De regresso à minha,  e seguindo o conselho de Otto Lara Resende anotava, no computador, o que testemunhara de ouvidos e olhos de repórter, que já não era, mas guardara o viés.

Magalhães Pinto tinha razão: é um perigo manter um diário íntimo. O meu foi invadido, atestou o Lourival, do help desk do escritório de advocacia de meus amigos Eduardo Ferrão e Paulo Baeta Neves e onde também teve banca o jurista Nélson Jobim. Um tal vírus Cavalo de Tróia foi implantado na máquina e um dia vi colado num e-mail um trecho do meu diário. Que susto! Era no tempo de graves acontecimentos na vida brasileira. O Lourival capturou o Internet Protocol do invasor, mas, por encarar como aborrecida demais a demanda diante da burocracia, abandonei a ideia de procurar a Polícia Federal para dar queixa. Fiz muito mal, agi como o cidadão que adota a máxima equivocada do “deixa pra lá”. É claro que tenho os meus suspeitos de sempre. Só mudei a forma de registrar o diário: comprei outro computador e o mantive desligado da rede.

Há o diário íntimo e o diário público. Deste se encarrega a imprensa, onde os diaristas públicos, os repórteres, dão conhecimento geral do que acontece nos diferentes setores da cidade e do País, desde a Roma dos cônsules, onde foi criado o Acta Diurna, o primeiro diário oficial do mundo. Diz o historiador Tácito que o grande Júlio César, então general conquistando a Gália, de nada se ocupava, antes de o correio a cavalo lhe trazer um exemplar de tabuinha das fofocas da capital, pois o Acta Diurna, além dos atos oficiais do cônsul e do Senado, se ocupava delas: quem comeu quem, quem ofereceu banquete etc. Aquilo que hoje chamamos de notinhas de coluna e também as fake news nasceram, pois, sob égide oficial. E continuam. Nada de novo sob o sol.

Tenho ultimamente percorrido os olhos em muitas páginas do meu diário, para checar consequências de registros ali deitados no correr de décadas. Porque, todos sabem, como diz o conselheiro Acácio de Eça de Queiroz, as consequências vêm sempre depois, seja na atitude tomada no cotidiano banal de nossas vidas seja num cenário muito mais grave da existência humana, como é a Política, a Justiça, o Governo, a Arte, a Guerra. O autor de um diário, ao registrar não só uma frase ouvida, mas também um sorriso recolhido, um muxoxo, uma anedota contada na descontração de um uísque, está gravando a fotografia da alma do interlocutor e, mais do que isso, a ambiência política, administrativa, artística, religiosa etc, em que tais gestos tão singelos ocorrem.

O meu diário não é floreado de psicologismos como o de meu pai, de uma geração culta, firmada sob os auspícios de Freud, treslida de Dostoiévski, de Proust, de Anatole France, de Machado de Assis, radiologistas sem igual das fraturas da alma humana. Criado sob o império do jornalismo norte-americano, do objetivismo do lead, no qual o importante é o fato em si, o quando, o onde e o como, deitei nas páginas do meu diário a essência, telegraficamente. Imaginava um dia em que, sem os aborrecimentos do ganha-pão, pudesse debruçar-me sobre aquelas páginas para delas extrair, aí sim, uma decifração.

Se Deus quiser, ainda poderei fazê-lo. Por enquanto o que me resta é, às vezes, deitar os olhos sobre aquelas páginas e ficar entre o riso da melancolia, diante de acontecimentos em volta de homens de boa alma, e o assombro do abismo diante da perversidade de outros. Os diaristas públicos estão aí a registrar com eficiência a observação do conselheiro Acácio, mas desconhecem o por que, última pergunta, e vital, do vademécum da imprensa.

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