Almir Pazzianotto Pinto

O País ingovernável

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Políticos, imprensa e a elite civil reagem coléricos à declaração atribuída ao presidente Jair Bolsonaro, para quem o País seria ingovernável. Relembro que a frase pertence ao ex-presidente José Sarney, que a disse após tomar conhecimento do texto da Constituição de 1988.
O presidente Bolsonaro, ao compartilhar o que foi publicado por Paulo Portinho, analista da Comissão de Valores Imobiliários, nada mais fez do que dar destaque ao óbvio. Basta refletir sobre o passado marcado por golpes e oito mudanças de constituição, para se concluir que estabilidade, organização e disciplina, sem os quais inexiste desenvolvimento, não participam dos hábitos da política brasileira.
O mesmo já foi dito em outras ocasiões por presidentes e primeiros-ministros de distintos países. A confusa Itália é exemplo de país ingovernável, escreveu Norberto Bobbio. De Gaulle também o teria dito a respeito da França. Líbia, Iraque, Venezuela, são vítimas de ingovernabilidade. O mesmo não se pode dizer da Alemanha, do Japão, ou da China. A Inglaterra suportou os horrores da Segunda Grande Guerra sem prejuízo da governabilidade, assegurada pela liderança de Churchill.
Afinal, o que são os nossos legislativos municipais, estaduais e federais, senão a representação amalgamada de velhos e condenáveis usos, costumes e culturas, como os analisou Paulo Prado no imortal Retrato do Brasil. Governabilidade é definida no Dicionário Houaiss como “a situação em que as instituições funcionam bem, existe tranquilidade política e suficiente estabilidade financeira para que o governo possa governar”. “A não governabilidade é o produto conjunto de uma crise de gestão administrativa do sistema e de uma crise de apoio político dos cidadãos às autoridades e ao governo”, observa Gianfranco Paquino no Dicionário de Política, escrito em parceria com Norberto Bobbio e Nicola Mateucci (Editora UNB, Brasília, DF, 1909). Costuma se agravar em períodos de aguda crise fiscal.
Governar é o desafio diário enfrentado pelo chefe do Poder Executivo, chame-se Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Luís Inácio, Dilma Roussef ou Jair Bolsonaro. Exige mais do que voluntarismo e desejo de acertar. Necessita de retaguarda partidária sólida, coesa, confiável, e de ministros de Estado dedicados, competentes, despidos de vaidade. Dele se espera que saiba parar, refletir e calar em momentos de pressão e dificuldade.
A tranquilidade essencial para o exercício do governo é comprometida quando os partidos se reduzem a voláteis legendas, fracas, pusilânimes, empenhadas na prática da fisiologia e na defesa dos interesses corporativos, tribais, pessoais.
A instabilidade financeira esteve presente em todos os governos democráticos, desde a queda do regime militar. Nunca há dinheiro suficiente para atender às demandas sociais e às necessidades de investimentos em infraestrutura. Quando existe é dilapidado na corrupção ou consumido em obras faraônicas. Ambiciosos projetos são lançados, iniciados e paralisados por falta de recursos. Como frutos colaterais da instabilidade, temos a imprevisibilidade e as turbulências geradoras de incerteza, que atravancam o processo de desenvolvimento e debilitam o mercado de trabalho.
Nas últimas décadas, o País tem sido vítima de opressiva mediocridade política. Com a naturalidade típica dos oportunistas, desenvolvem-se as negociações em torno de ministérios, cargos, diretorias, empregos e favores, segundo o desavergonhado princípio do “toma lá dá cá”. Os presidentes das casas legislativas se utilizam dos regimentos internos para manipular ordens do dia e pautas de votações, em sintonia com a conveniência pessoal, regional ou partidária.
Veja-se, para não ir longe, o caso da Previdência Social. Que o sistema previdenciário previsto na Constituição de 1988 é deficitário e inviável, todos sabemos. Errou a Assembleia Nacional Constituinte quando redigiu, sob o comando de relatores e sub-relatores alucinados, o Título VIII que trata Da Ordem Social (arts. 193/232). Várias tentativas de adaptá-lo ao mundo real fracassaram. Diante da crise já instalada, o presidente Michel Temer incluiu a Reforma da Previdência como prioridade de ambiciosa Agenda Para o Brasil, apresentada no final de 2017. Ouvido pela imprensa declarou na ocasião o ministro da Fazenda Henrique Meirelles: “A reforma da Previdência será aprovada dentro de dois meses” (IstoÉ, 1º/11/2017). Estava iludido. Passaram-se quase dois anos e o destino da última proposta de emenda, apresentada pelo ministro Paulo Guedes, é incerto e desconhecido. Já se cogita da possibilidade de ser abandonada.
O Brasil vive processo de ingovernabilidade. Não crucifiquem o presidente Jair Bolsonaro pelo gesto impulsivo. Eleito acidentalmente, sem dispor de retaguarda política forte, firme, confiável, não lhe basta o apoio discreto de honrados oficiais generais. As batalhas que o aguardam na Câmara dos Deputados, no Senado, e no Poder Judiciário, dificilmente serão vencidas se insistir em ser voluntarioso à frente de indisciplinado pelotão de deputados e senadores dotados de armamento obsoleto, com escasso paiol de munição.

Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

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