Sylvain Levy

O mito brasileiro

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O Datafolha publicou duas pesquisas sobre o Presidente Bolsonaro e sua gestão. 37% consideram a gestão ótima ou boa, 27% regular e 34% ruim ou péssima. Quanto a culpa de Bolsonaro em relação às 100 mil mortes pelo Coronavirus 47% consideram que não tem nenhuma culpa e 52% que tem alguma.

Tradicionalmente, em termos de propensão ao voto, as pesquisas tem revelado um eleitorado dividido em três estratos mais ou menos iguais: progressistas, mais a esquerda; conservadores pela direita e indecisos, pelo centro, que ora fazem o pendulo da vitória pender para um ou outro lado. Pelas margens de erro de ambos os levantamentos acima referidos constata-se que o país está mais marcantemente dividido e que a parcela da população que fica entre os dois polos esta se achatando.

A responsabilidade por essa alteração é de Bolsonaro ou do público que o segue?

No meu entender é de ambos. Bolsonaro porque é o que é, consegue captar o animo popular e é um comunicador nato. Autenticidade, percepção, intuição e articulação.

E o público que aceita e concorda com ele e com sua gestão, mesmo com notícias sobre ilegalidades familiares e sem notícias sobre planos de governo, de combate ao desemprego, de melhorias na saúde e na educação, de recuperação da economia? Não existe uma linha mestra que possa identificar seu projeto. Porém essa ausência de programa de governo nem nada, abala sua aprovação que, ao contrário, só vai crescendo.

Portanto, pode ser pensado que a mensagem de seu governo é ele próprio.

Wilhelm Reich escreveu em 1933: “o sucesso de Hitler nos anos 1928-1933 é a comprovação de que são os “grandes homens” que fazem a história, insuflando nas massas as suas “ideias”; e é verdade que a propaganda nacional-socialista se fundamenta nessa ideologia do chefe. Segundo um outro Wilhelm, o Stapel, escritor muito vinculado a Hitler “o nacional-socialismo é um movimento elementar impossível de superar com argumentos. Os argumentos só teriam efeito se o movimento fosse imposto usando argumentos”.

Ou seja, quando Bolsonaro diz “a constituição sou eu”, ele está reafirmando essa constatação de 80 anos atrás e deixando claro aos seguidores e influenciados que suas palavras e atitudes, e mais que tudo, ele próprio são/é a mensagem. Este tipo de “informação” cria um autêntico “quebra mola” no percurso mental das pessoas e mesmo aqueles que podem fazer um desvio de trajeto são impactados.

Por dentro dessa mensagem segue uma instrução subliminar de poder baseado na força e na autoridade do líder que pode ser transmitida a todos e é desse poder da força que nasce o autoritarismo, é estimulada a agressividade e faz florescer a violência.

Essa violência nossa de cada dia, presente nos atos de racismo e sexismo, de perseguição aos diferentes, de feminicídio e de violência policial ascendente.

O Brasil tem vários mitos. Dos mais conhecidos são “Deus é brasileiro” e o brasileiro é um homem cordial, entretanto, esse mito do brasileiro como ser cordial pode ser contestado com a sociologia, com a história e com as estatísticas.

Ao brilhante Sergio Buarque de Holanda é atribuída a expressão “homem cordial” como a significar um comportamento padrão do brasileiro. Na verdade essa concepção dos brasileiros nasceu de elogios de estrangeiros a virtudes como hospitalidade e generosidade e credita-se a Ribeiro Couto, diplomata brasileiro na França, em carta de 1931, a primeira ideia a respeito. Em “Raízes do Brasil”, publicado em 1936, Buarque de Holanda adotou a expressão como representativa de “um traço definido do caráter brasileiro, na medida em que permanece viva e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano”. O “homem cordial” é, segundo essa definição, “a forma natural e viva que se converteu em fórmula”.

No entanto não é justo associar a ideia do “homem cordial” a um comportamento de cordialidade como padrão nacional. Sergio Buarque acredita ser um sentimento existente no brasileiro mas não como um comportamento pois essas virtudes não são sinônimos de bons modos. Muito menos de bondade ou amizade. No fundo, a nossa forma de convívio social é “justamente o contrário da polidez”. Ou seja, a atitude polida equivale a um disfarce que permite cada qual preservar sua sensibilidade e suas emoções e com essa máscara, “o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”.

Em 2018, ano com as estatísticas mais recentes divulgadas pelo DATASUS do Ministério da Saúde, dos 1.316.719 óbitos que ocorreram no Brasil, 150.814, ou 11,5%, foram devidos as chamadas causas externas (transito, acidentes, suicídios, agressões, etc) e dessas, 55.914 foram classificadas como agressões ou homicídios,, ou seja, 4,2% do total geral de óbitos no país. Em apenas um ano 41.179 dessas mortes foram ocasionadas por armas de fogo. A título de comparação pode ser lembrado que os Estados Unidos, em todo período de guerra no Vietnã – de 1959 a 1975, perdeu pouco mais de 58 mil soldados. Entre 1991 e 2017 , segundo a ONU, 1,2 milhão de pessoas perderam a vida por homicídios no Brasil

Vocês já ouviram falar na Guerra dos Bárbaros, entre índios e portugueses, ocorrida na Paraíba e Rio Grande do Norte? Na Revolta de Amador Bueno, em 1641, em, São Paulo ou na Revolução de Beckman, dos comerciantes no Maranhão, em 1684/85? Houve a Conspiração dos Suassunas, em Pernambuco, e outras mais conhecidas, como Cabanagem, no PA, a Sabinada, na BA, a Revolta dos Vinténs, no RJ. A lista de guerras, lutas, levantes e rebeliões populares e sociais no Brasil alcança mais de cem ocorrências dessa natureza do século 16 ao XX, das quais apenas 14 são guerras internacionais, contra inimigo externo.

A história do Brasil é rica em eventos violentos fratricidas de brasileiros contra brasileiros, índios e portugueses. Circunstancias que a educação escolar teima em esconder, orientada, quem sabe por quem, a divulgar o mito do brasileiro como homem cordial.

O violento homem nada cordial que habita a cada um de nós brasileiros pode servir de pista para entendermos a os avanços de popularidade e de aceitação que vão marcando o governo e a pessoa de Jair Bolsonaro. A agressividade e violência intrínsecas, introjetadas em cada um, leva parcela da população a se identificar com o presidente e com tudo que ele representa.

Quanto a redução paulatina do um/terço da parcela tradicionalmente centrista, já baixando para um/quarto (27%), pode-se pensar que parte do eleitorado, até então, envergonhado com sua escolha está deixando de lado esse incomodo e assumindo suas identificações e convicções.

Sylvain Levy é psicanalista e membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasilia/Febrapsi-IPA.

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