Dagoberto Alves de Almeida

O Estado empreendedor

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Aconselha-se cautela na leitura deste texto quanto a interpretações extremistas. O título Estado Empreendedor não advoga o estado totalitário, que se envolve e controla cada aspecto da vida de seus cidadãos, nem compactua com o equívoco do assim chamado estado mínimo, aquele em que o governo “vira as costas” para as obrigações básicas da população. Esse texto pondera sobre a participação do estado na criação da economia do conhecimento. Ao contrário do que se supõe, inovações tecnológicas disruptivas são promovidas em grande monta pelo estado e não, exclusivamente, pela iniciativa privada.

Mariana Mazzucato na obra The Entrepreneurial State: debunking public vs. private sector miths se utiliza do onipresente telefone celular para demonstrar que o estado foi o agente inicial responsável pelas inovações que permitiram seu desenvolvimento. O fato é que sem o estado esse ícone do empreendedorismo e da inovação não seria jamais uma realidade, pois que não comportaria as tecnologias do microchip, internet, GPS e da tela touchscreen, por exemplos.

A primeira manifestação do que conhecemos hoje como internet ocorreu em 1969 quando o aluno da UCLA Charlye Kline transmitiu “L” e “O” (login) para o Stanford Research Institute. Então conhecida como ARPANET a então nascente internet foi patrocinada pela DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency), órgão da Secretaria de Defesa dos EUA com o objetivo específico de conectar computadores em rede caso ocorresse uma conflagração nuclear naquele período da guerra fria.

Foi novamente a ansiedade provocada por um potencial conflito com a então União Soviética que levou os Estados Unidos a desenvolver o GPS, então projeto NAVSTAR, patrocinado pelo Departamento de Defesa Americano com pesquisadores da Universidade Johns Hopkins.

A própria tela touchscreen foi desenvolvida graças a concessões públicas da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Fundação Nacional de Ciências (NSF) dos Estados Unidos para a Universidade de Delaware.

Já o microchip da Texas Instruments, desenvolvido por Jack Kilby, um de seus inventores, teve o estado representado pela Força Aérea Americana como seu primeiro grande patrocinador ao aparelhar os mísseis Minuteman em 1962.

Curiosamente, não fosse o estado talvez a Apple Computer nem existisse caso a SBIC (Small Business Investment Company), órgão equivalente ao nosso SEBRAE, não tivesse acreditado nessa então pequena e ousada empresa ao garantir seu primeiro aporte de 500 mil dólares em investimento.

Embora formuladores de políticas institucionais, frequentemente insistam em desconsiderar esforços para a educação e ciência, o fato é que os países que estão na vanguarda tecnológica são aqueles que aplicam parcelas substanciais de seus orçamentos em pesquisa e desenvolvimento. A título de exemplo em 2016 os EUA, com sua forte cultura empreendedora, aplicaram 2,7% do seu orçamento em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Apesar de não ser o maior percentual entre as nações hegemônicas é, no entanto, o maior investimento do mundo em valores absolutos, representando 1.586 dólares por habitante. Quem proporcionalmente mais investe é o estado de Israel com 4,9% de seu PIB, seguido pela Coreia do Sul com 4,3%. O Reino Unido, por sua vez, revelou seu interesse em aumentar o orçamento de P&D de 1,7% no início da década passada para 2,4% até 2027. Valor, por sinal, inferior ao que já é praticado pela Alemanha (2,9%). São essas nações na condição de estados empreendedores que, com suas politicas em prol do conhecimento pavimentam o desenvolvimento robusto e consistente de seus povos.

O estado empreendedor é, portanto, essencial para o desenvolvimento de tecnologias tão disruptivas que frequentemente começam no âmbito da ciência pura, em anos ou décadas de desenvolvimento até uma possível aplicação. Tecnologias disruptivas que muito provavelmente jamais ocorreriam caso dependessem exclusivamente do suporte de instituições privadas em face do longo tempo de maturação e dos imensos riscos de desenvolvimento envolvidos. Aliás, Venture capital, via de regra, só admite horizontes de risco curtos e médios, da ordem de 3 a 5 anos. Vale esclarecer que com essa ressalva não se descarta, em absoluto, a importância e necessidade imprescindível do investimento privado. Todavia é preciso que se tenha em mente que só virão se os riscos forem relativamente baixos e, principalmente, se o ambiente de negócios for estável, com regras claras e garantia de cumprimento dos contratos firmados.

No caso do Brasil, o investimento público em P&D nos coloca em 27º posto, aplicando 1,3% do PIB segundo dados de 2017do Banco Mundial. Nossa fragilidade nesse quesito é mais pela falta de política de estado para P&D capaz de sobreviver à temporalidade dos governos, haja vista os recursos estarem minguando progressivamente ao longo dos últimos anos. O veto presidencial à proibição de contingenciamento dos recursos do FNDCT e o corte de 68,9% da cota de importação de equipamentos e insumos destinados à pesquisa científica, reduzindo de 300 milhões no ano passado para apenas 93,29 milhões, são apenas dois dos exemplos mais recentes. Soma-se a esse quadro o aumento de taxas de importação de insumos críticos nesse momento de pandemia como o oxigênio para respiradores.

Fica o obvio, ciência salva vidas, garante saúde e prosperidade. Sua ausência compromete a soberania como bem atesta a geopolítica da vacina ao estressar nossa dependência na aquisição do imunizante junto a Índia e China. Assim como em várias tecnologias é fato que insumos farmacêuticos são produtos estratégicos das nações hegemônicas. Obviamente, o custo que o Brasil já está pagando para os centros internacionais de ciência e tecnologia em royalties é imensamente mais alto do que se investisse, de forma consistente, em nossos próprios centros de conhecimento.

O estado empreendedor, por não desconsiderar a educação e a ciência como ferramentas básicas para o desenvolvimento robusto e consistente fomenta a aplicação da ciência em tecnologias inovadoras influenciando inexoravelmente o futuro, não apenas de uma nação, mas de toda a humanidade. A continuarmos nessa toada equivocada e perniciosa vidas continuarão sendo ceifadas, miséria e ignorância campeando porque, simplesmente, não prestamos atenção ao que realmente importa, o conhecimento.

Dagoberto Alves de Almeida, engenheiro, é formado pela UNIFEI. Mestre pela UFRJ. Doutor pela University of Cranfield, Inglaterra. Professor de Engenharia de Produção. Reitor da UNIFEI entre 2013 e 2016 e de 2017 a 2020.

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