Miguel Gustavo de Paiva Torres

O discurso do doutor Assis

acessibilidade:

Tudo começou com um romance juvenil sob a luz do luar do céu pernambucano banhada pelas águas do Capibaribe e pelas brancas sedas das antigas areias do mar dos arrecifes, na cidade do Recife.

Corria o ano de 1967 e quem mandava no Brasil era o Doutor -assim o chamavam- Assis Chateaubriand.  O manda-chuva controlava o maior império de comunicações jamais havido nas terras dos tupis e guaranis e caetés, formando opinião pública nacional e aterrorizando presidentes, governadores, senadores e deputados, do norte ao sul e do leste ao oeste.

Cumpriu o sonho de ser embaixador do Brasil junto ao  Reino Unido da Grã-Bretanha apresentando suas credenciais à nossa eterna Rainha Elizabete, no Palácio de Buckingham, vestido com capa e chapéu de couro em homenagem aos vaqueiros nordestinos, cearense e cabra macho que era.

Agora, em cadeira de rodas, desembarcava no aeroporto do Recife para prestigiar o casamento da lindíssima morena Teresa Cristina Maranhão com o louro Edmund John Anthony  Bosschart, de pele branca avermelhada, mestiço de genes holandês, inglês e brasileiro, nascido  na capital pernambucana  com a sina de ser nordestino para sempre.

A linda morena era filha do Senhor Gomes Maranhão, também manda-chuva da indústria do açúcar, condômino dos Diários Associados de Chateaubriand e amigo leal e dedicado do imperador das notícias, fatos e versões. Presidiu durante oito anos o IAA e controlou com mão de ferro o preço do açúcar no mercado internacional.

Um casamento em Recife, na década de 60, com a presença do padrinho Doutor Assis em cadeira de rodas, foi um evento social para  balançar toda a high society brasileira leitora incondicional da revista O Cruzeiro, propriedade do padrinho e condôminos.

Só quem viveu essa época sabe o poder e a influência da colorida e internacional revista de variedades O Cruzeiro, sempre estampando as mais lindas beldades do exótico país tropical.

O ponto alto do casamento de conto de fadas na Igreja dos Clérigos foi o discurso do poderoso padrinho: “….minha afilhada vocês a fardaram como se mandassem Teresa Cristina para um presépio. Nosso noivo, desde que soube que era um holandês, neto de Jack Ayres, um amigo de quase 50 anos, o bichinho me lavou o peito. O que é que as correntes antropológicas alegam contra holandês e inglês?  Que os dois são racistas. Fora do terreiro natal não cruzam, não há miscigenação possível com eles. Aqui temos um anglo-flamengo. Une-se a uma caboclinha descendente de índios de Águas Belas. Teresa Cristina satura este ambiente do cheiro da flor do manacá e do sabor do jambo amarelo. É uma fruta do mato que estamos casando. ….. ponham na cabeça a palavra mimo, e terão São Pedro dos Clérigos. É um ninho de rolas do sertão. Achamos nestes sítios a esperança com que embarcar noivos para a experiencia matrimonial…. fui padrinho, em  Santa Maria Maggiore, no Palácio Borghese, de uma princesa Borghese. A manhã em Roma, no Palácio Borghese, era tão sugestiva quanto esta tarde de Olinda, na colina inspirada, onde nos encontramos… Doralice e Gomes Maranhão lavraram um tento. Teresa Cristina tem um casamento de princesa romana, como eu vi, do meio da rua Laura Souza Leão casar-se e atravessar as ruas do Recife…..vocês não imaginam como eu embarquei rebolando de contente para ser padrinho de uma menina que se casa com um neto do último querido amigo que nos entregava no cais, as chaves do mar. Maranhão e Maranhoa. Eu quisera ter 10 filhas para entregar a cambadinha aos Jack Ayres, enquanto restar cheiro de “Shipchandler” armado na Lingoeta e suas vizinhanças. É preciso restaurar o Atlântico que está morto, aqui. Getúlio Vargas, em dezembro de 44, me chamou a Petrópolis para dizer isto: -“ Sou candidato contra o Brigadeiro de vocês todos.”- ao que retorqui:  “- Mas ditador (ele gostava quando Pedro Ernesto e eu assim o chamávamos.) o senhor mesmo nos dispersou. Entregou Pernambuco a Agamenon e este só fez nos desunir.” Vargas teve esta frase que nunca mais esqueci:  – “ Tens razão.  Confiei-lhe Pernambuco confiando que o trataria  como um observatório do Brasil, debruçado no oceano, e o primeiro a ondar a Europa e a parte norte do hemisfério.”

Pernambucanos.

Vamos casar nossas filhas enquanto subsistir a dinastia dos Jack Ayres com ela…..o noivo tem um bandão de coisas que o dicionário manda calar. É gringo com cobra dágua…..ainda bem que agora entram os autóctones. Estamos em casa: Viva a  Maranhoada:  de fora só fica o noivo, ele é, como se dizia por estes lados, outrora, jacaré com cobra d’água.”

Chateuabriand continuou ainda por largo tempo o seu discurso de raiz no grande e belo casarão de Olinda, enquanto o sol declinava lentamente no Atlântico ladeira abaixo.

Miguel Gustavo de Paiva Torres é diplomata.

Reportar Erro