Silvia Caetano

O desprezo dos senadores pelos direitos do autor

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Lisboa – É responsabilidade da Câmara dos Deputados corrigir a falha dos senadores que excluíram do projeto sobre fake news o artigo que obrigava as plataformas digitais a remunerarem o uso de conteúdos jornalísticos, artísticos e muitos outros. Ou seja, desprezaram a proteção dos direitos do autor, cuja produção é utilizada gratuitamente por essas plataformas, que aumentam seus lucros com essa apropriação indébita, sem partilhar um só real com quem rala para produzi-los, como jornais, escritores, poetas, cientistas, pesquisadores e criadores de natureza variada.

Na matéria, O Brasil está mesmo na vanguarda do atraso. Desde março do ano passado, a União Europeia aprovou uma lei para proteger os direitos do autor no mercado único digital, com dois artigos que causaram forte polêmica durante sua discussão. O 13, que virou 17, dispõe que as grandes plataformas tecnológicas, como o You Tube,estão obrigadas a estabelecer acordos de licenciamento e a obterem autorização dos autores para usarem trabalhos protegidos por direitos de terceiros.

O 13, também conhecido como” filtro upload”, é direcionado aos grandes prestadores de serviço que armazenam e facultam enorme quantidade de material protegido. O artigo obriga a empresa que permita que seus usuários produzam conteúdos, até mesmo em redes sociais, a criar mecanismos para filtrar o conteúdo antes mesmo de ele ser publicado, protegendo o direito de autor, sob risco de processo. Por exemplo, se antes era preciso o autor notificar o You Tube sobre o problema, agora a rede social é responsabilizada pela publicação.

Também o Facebook terá de filtrar os conteúdos e impedir que os usuários o postem, caso infrinja algum direito de autor. Houve choros e ranger de dentes. Empresas como Facebook,Twitter e You Tube jogaram pesado contra a iniciativa da União Europeia,alegando não possuírem estrutura para filtrar tudo que seus usuários postam. Ninguém acreditou, pois podem isso e muito mais, como se tem visto em todo o mundo e a proposta foi aprovada sem hesitação.

Já o 11, que se tornou o 15, apelidado de “taxa do link”, dispõem que todo link em um determinado site que leve a um conteúdo de direito autoral com curadoria tenha de pagar uma taxa para isso. Ou seja, possibilita exigir que sites ou serviços agregadores de notícias, como o Google News, paguem para entregar uma curadoria de links ao usuário. Nada mais justo, pois não se pode lucrar com o esforço do outro sem remunerá-lo.Quer publicar trabalho alheio ?Peça autorização e pague ao autor.

Na realidade, a intenção original da Comissão Europeia era modernizar as regras dos direitos de autor que já não eram atualizadas desde 2001. Desde então, muita coisa mudou e a internet popularizou-se, com bilhões de usuários em todo o mundo. Os parlamentares europeus olharam  então para o futuro, que já é hoje, e aprovaram uma lei para reforçar a responsabilidade das grandes plataformas sobre o conteúdo que é postado pelos utilizadores e monetizado por essas empresas, sem que seus autores recebam um tostão de mel coado pelos seus trabalhos.

Anêmico e desidratado, já sem dispositivos que seriam preciosos no combate às fake news, o projeto aprovado pelo Senado e que ainda será votado pela Câmara dos Deputados, corre o risco de ser vetado pelo capitão Bolsonaro. Como sua campanha eleitoral transitou pelo lado cinzento das plataformas digitais, sem cujo apoio dificilmente teria chegado à Presidência da República, é natural que não deseje iluminar esse ambiente lodoso e queira preservá-lo tal como até então.

Estranho é que o desapreço dos senadores pelos direitos do autor mereceu apenas uma linha num determinado jornal de grande circulação e, ainda assim, sem ser contextualizado. Se o fato passou ou não batido, é imprescindível agora a imprensa chamar a atenção dos Deputados para a importância de ressuscitar o artigo desdenhado pelos senadores. Do jeito que o texto foi aprovado, as plataformas digitais continuarão a sugar o trabalho dos jornalistas.

Se adotadas no Brasil, as novas regras europeias, apelidadas de value gap (diferença de valor), entre criadores de conteúdos e as grandes plataformas tecnológicas, representariam reforço significativo para o caixa dos jornais, cuja vida financeira vai de mal a pior. Por exemplo, a bilionária Facebook se beneficia dos conteúdos que lá é partilhado pelos jornais, mas nada paga por eles. Por sua vez,os jornais não podem deixar de lá partilhar os conteúdos,sob pena de perderem grande volume de tráfego e de receitas.A imprensa precisa lutar contra este jogo desequilibrado e injusto.

Ou seja, muitas vezes a sobrevivência financeira das empresas que fazem jornalismo depende destas plataformas que, de certa forma, também precisam dos jornais. Outro exemplo das discrepâncias entre as plataformas e os Publishers, como acontece nos Estado Unido, mas que logo poderão chegar ao Brasil: a Apple vai lançar o News+, uma assinatura única de 9,99 dólares que dá acesso a quase 300 revistas e jornais. Contudo, a marca só vai partilhar metade deste valor com os publishers, enquanto na App Store, a comissão cobrada pela Apple é bem menor, de apenas 30%%.

Há ainda mais ameaças no horizonte contra a imprensa. A Microsoft anunciou que vai começar a substituir jornalistas por robôs, dotados de inteligência Artificial (IA), para selecionar as notícias que surgem no seu portal de informação MSN. Desconhecem-se  os critérios ou códigos de conduta que a empresa adotará para lançar mais jornalistas no desemprego.Há informações de que a  Google  planeja iniciativa semelhante.É importante que essas questões sejam investigadas e divulgadas pela imprensa, sem reduzi-las a frases descontextualizadas, como ocorreu com o desprezo dos Senadores pelos direitos do autor na votação do projeto das fake news.

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