Índio quer apito, mas também quer passaporte

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Pela primeira vez, o Brasil celebra neste 19 de abril o “Dia dos Povos Indígenas” – e não mais o “Dia do Índio”, como a data era conhecida até o ano passado.

Consta que até 2022, a data, oficialmente, marcava o ‘Dia do Índio’, mas o termo era considerado problemático por ser genérico e preconceituoso, além de não considerar a diversidade das etnias.

Além disso, sobre indígenas, há pouco tempo, andei observando as repercussões em torno do fato de que índios americanos foram eleitos para a Câmara de Representantes nas recentes “mid-term elections” dos EUA.

E aí, pensando em índios daqui e d’acolá, lembrei de um episódio ocorrido na Embaixada em Washington, acho que em 1982, quando o índio xavante Mário Juruna foi eleito deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro. Salvo engano, em 129 anos de República, Mário Juruna foi o nosso único deputado federal indígena.

. Peço ao amigo leitor que se acomode que aí vem história.

Era um sábado friorento na área de Washington no início do ano. Eu era Segundo-Secretário na Embaixada do Brasil e estava em regime de plantão semanal. Julguei que seria um fim de semana tranquilo e conclui que dava para jogar uma partida de tênis naquela manhã. Tive o cuidado de avisar o Chefe de que estaria a todo o tempo alcançável, de posse de um então moderníssimo “bip” ou “pager” para qualquer eventualidade.

Até aí tudo bem, tudo (quase) normal. E a tal eventualidade logo se apresentou no segundo set do jogo contra um colega e amigo que, servindo em Nova York, tinha vindo passar o fim de semana conosco. No correr do segundo set, logo depois que eu acertei um winner de back hand, o diabólico aparelhinho emitiu o inconfundível e intermitente bip, indicando que o meu Grand Slam tinha acabado. Corri até o primeiro orelhão e lá fiquei sabendo que o Embaixador Silveira pedia minha presença no Setor Consular (naquele tempo não havia sido criado o Consulado-Geral em Washington, independente da Embaixada).

O Embaixador disse que um certo deputado havia telefonado de Brasília queixando-se de que não recebera o tratamento digno de um parlamentar na área consular.

– Vá lá e resolva isso.

A ordem de Sua Excelência não podia ser mais clara.

Eleito com 31 mil votos, o nosso bravo silvícola Juruna teve a brilhante ideia de disparar convites para as mais diversas comunidades indígenas deste mundo para assistir sua posse como parlamentar.

Encontrei o Encarregado do Setor, o querido, competentíssimo e saudoso Antonino Ferrari Campos em estado de grande nervosismo, andando de um lado para o outro, em meio a sonoros pigarros, mercê dos sucessivos cigarros que sempre fumava.
Contou-me então que o deputado Mario Juruna havia telefonado do Brasil, furioso, vociferando ofensas que só um cacique xavante ousaria fazer. Era certamente, disse ele, Juruna, mais uma desconsideração e franca discriminação dos caras-pálidas contra a brava nação xavante.
Tudo porque o Setor Consular da Embaixada se recusava a apor o visto consular nos documentos de viagem dos altos representantes Creek, Cherokee, Navajo, Iroqueses, Mohawk, Oneida, Onondaga, Cayuga, Seneca, Tuscarora, Sioux, Apache, entre outros, convidados por Juruna para prestigiar sua posse em Brasília.

Fiquei então sabendo do porquê do imbróglio. E tudo era por uma simples razão: as diferentes delegações indígenas norte-americanas apresentaram-se no Setor Consular portanto passaportes ou outro tipo de documentos de viagem emitidos por suas nações, tribos ou comunidades. Mas não os passaportes normais americanos. E, naturalmente, o Governo brasileiro (como, de resto, nenhum outro), não reconhece os documentos produzidos pelas bravas tribos ou comunidades indígenas dos Estados Unidos, por não gozarem de capacidade jurídica plena de um país autônomo.

Foi isso que, depois de reportar o assunto ao Embaixador Silveira, expliquei ao deputado Mario Juruna ao lhe telefona. Acrescentei que, uma vez de posse de um passaporte americano, todos os integrantes das diversas representações indígenas receberiam sem delongas os vistos competentes.

De nada adiantou. Naturalmente, passei a ser de imediato o destinatário dos impropérios que o nosso bom selvagem, pintado com cores bélicas e decerto brandindo tacapes e flechas mortíferas antes dirigidos ao nosso bom Antonino Ferrari Campos. Senti que Tupãs e Manitus desfecharam raios amaldiçoados sobre mim. Ainda bem que a ofensiva xavante se deu por telefone. Mas tenho certeza de que, do outro lado da linha, o gravador do nosso bravo guerreiro xavante estava ligado e registrava tudo.

Não acompanhei o desfecho do assunto, nem sei se algo semelhante ocorreu em outras repartições consulares brasileiras alhures.

***

Ao contrário do que se possa pensar, não se tratou de um episódio isolado envolvendo índios americanos em pretendidas viagens ao exterior e barrados pelo excesso de zelo de um burocrata.

O episódio mais emblemático do gênero deu-se na Grã-Bretanha em 2010, quando o governo britânico se recusou a permitir que uma equipe “nacional” de lacrosse (uma espécie de hóquei sobre grama) dos índios americanos iroqueses (iroquois, em inglês e francês) viajasse a Manchester para participar do Campeonato Mundial da modalidade portando passaportes emitidos por aquela comunidade indígena. Diante do imbróglio que se estabeleceu na ocasião, o governo dos Estados Unidos ofereceu-se para conceder passaportes norte-americanos, o que foi recusado pela representação indígena. A atitude dos Iroqueses e sua insistência em viajar com seus passaportes reside no âmago de uma das mais sensíveis questões indígenas nos EUA – a soberania, ainda hoje debatida com fervor.

Há que referir também que em outubro de 2015, dois chefes indígenas, da Nação Onondaga e da tribo Mohawk, viajaram à Bolívia a convite do Presidente daquele país, Evo Morales, para participar da “Conferência dos Povos do Mundo sobre Mudança Climática e Defesa da Vida”. Tendo viajado com passaportes de suas comunidades, os representantes indígenas ficaram dias retidos em La Paz, pois o governo do Peru, onde o voo de regresso aos Estados Unidos faria escala, decidiram não permitir o trânsito por Lima com seus passaportes.

Dante Coelho de Lima é diplomata.

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