Dante Coelho de Lima

Índio quer apito. E também o próprio passaporte

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Tenho observado as repercussões em torno do fato de que índios americanos foram eleitos para a Câmara de Representantes nas recentes “mid-term elections” dos EUA. E aí lembrei de um episódio ocorrido na Embaixada em Washington, acho que em 1982, quando o índio xavante Mário Juruna foi eleito deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro. Salvo engano, em 129 anos de República, Mario Juruna foi o nosso único deputado federal indígena.
Até aí tudo bem, tudo (quase) normal. Eleito com 31 mil votos, o bravo silvícola teve a brilhante ideia de disparar convites para as mais diversas comunidades indígenas deste mundo para assistir sua posse como parlamentar.
Era um sábado frio, e eu, Segundo-Secretário, estava em regime de plantão semanal na Embaixada. Não obstante, julguei que dava pra jogar uma partida de tênis naquele dia. Tive o cuidado de avisar o Chefe de que estaria a todo o tempo alcançável, de posse de um então moderníssimo “bip” ou “pager” para qualquer eventualidade. E a tal eventualidade logo se apresentou no segundo set do jogo contra o amigo Jorge Sant’Anna, tendo o diabólico aparelhinho emitido o inconfundível e intermitente bip, indicando que o meu Grand Slam tinha acabado. Corri até o primeiro orelhão e lá fiquei sabendo que o Embaixador Silveira pedia minha presença no Setor Consular (naquele tempo não havia sido criado o Consulado-Geral em Washington, independente da Embaixada).

Mario Juruna em ação.

O Embaixador disse que um deputado havia telefonado de Brasília queixando-se de que não recebera o tratamento digno de um parlamentar na área consular. “Vá lá e resolva isso”, a ordem de Sua Excelência não podia ser mais clara. Encontrei o Encarregado do Setor, o querido e competentíssimo Antonino Ferrari Campos em estado de grande nervosismo, andando de um lado pro outro, fumando sucessivos cigarros.
Contou-me então que o deputado Mario Juruna havia telefonado, furioso, vociferando ofensas que só um cacique xavante ousava fazer. Era certamente, disse ele, Juruna, mais uma desconsideração e franca discriminação dos caras-pálidas contra a brava nação xavante. Tudo porque o Setor Consular da Embaixada se recusava a apor o visto consular nos documentos de viagem dos altos representantes Creek, Cherokee, Navajo, Iroquois, Mohawk, Oneida, Onondaga, Cayuga, Seneca, Tuscarora, Sioux, Apache, entre outros, convidados por Juruna para prestigiar sua posse em Brasília.
E tudo era por uma simples razão: as diferentes delegações indígenas apresentaram-se no Setor Consular portanto passaportes ou outro tipo de documentos de viagem emitidos por suas tribos ou comunidades. Mas não os passaportes normais americanos. E o Governo brasileiro não reconhece os documentos produzidos pelas tribos ou comunidades indígenas dos Estados Unidos, por não gozarem de capacidade jurídica plena de um país autônomo.
Foi isso que expliquei ao deputado Mario Juruna ao telefone, acrescentando que uma vez de posse de um passaporte americano todos os integrantes das diversas representações indígenas receberiam sem delongas os vistos competentes.
De nada adiantou. Naturalmente, passei a ser de imediato o destinatário dos impropérios que o nosso bom selvagem, pintado com cores bélicas e brandindo tacapes e flechas mortíferas antes dirigidos ao nosso bom Antonino Ferrari Campos. Senti que Tupãs e Manitus desfecharam raios amaldiçoados sobre mim. Ainda bem que a ofensiva xavante deu-se por telefone. Mas tenho certeza de que, do outro lado da linha, o gravador do nosso bravo guerreiro xavante estava ligado.

Ao contrário do que se possa pensar, não se tratou de um episódio isolado envolvendo índios americanos em pretendida viagem ao exterior e barrados pelo excesso de zelo de um burocrata.
O episódio mais emblemático do gênero deu-se na Grã-Bretanha em 2010, quando o governo britânico recusou-se a permitir que uma equipe “nacional” de lacrosse (uma espécie de hoquei sobre grama) dos índios americanos Iroquois viajasse a Manchester para participar do Campeonato Mundial da modalidade portando passaportes emitidos por aquela comunidade indígena. Diante do imbróglio que se estabeleceu na ocasião, o governo dos Estados Unidos ofereceu-se para conceder passaportes norte-americanos, o que foi recusados pela representação indígena. A atitude dos Iroquois e sua insistência em viajar com seus passaportes reside no âmago de uma das mais sensíveis questões indígenas nos EUA – a soberania, ainda hoje debatida com fervor.
Há que referir também que em outubro de 2015, dois chefes indígenas, um da Nação Onondaga e da tribo Mohawk, viajaram à Bolívia a convite do Presidente daquele país, Evo Morales, para participar da “Conferência dos Povos do Mundo sobre Mudança Climática e Defesa da Vida”. Tendo viajado com passaportes de suas comunidades, os representantes indígenas ficaram dias retidos em La Paz, pois o governo do Peru, onde o voo de regresso aos Estados Unidos faria escala, decidiram não permitir o trânsito por Lima com seus passaportes.

Dante Coelho de Lima é diplomata.

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