Tiago de Vasconcelos

Há quem goste de corona

Mídia lucra alto com a quarentena durante o surto do Covid-19

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Assusta a todos a gravidade dos acontecimentos em torno do novo coronavírus e em especial o potencial para agravamento do problema, num raro cenário no qual as escolhas pessoais, além daquelas do poder público, podem resultar em mortes. Foi inevitável que um assunto de tamanha seriedade dominasse nossas vidas, paralisadas à espera de uma resolução. E no mundo hiperconectado era ainda mais improvável que o tema fosse designado às mãos capacitadas de especialistas e autoridades médicas. Tudo, como tem sido nos últimos anos, é pós-verdade, ideologia, política e fake news.

Para coroar o aspecto carapuça do vírus que serviu aos hábitos modernos de comunicação, o surto é o conteúdo perfeito para veículos e redes sociais, e transborda a audiência para o entretenimento em geral. É o reality show que tem de tudo: medo, morte, e, como nunca, uma plateia genuinamente cativa.

No clima atual – e sempre levando em consideração a gravidade do assunto – é difícil citar certos exageros sem ser acusado de terraplanista. Mas exatamente em razão da seriedade do tema, é importante analisar a fundo todas as feições do surto do novo coronavírus, inclusive a infeliz função de “influencer” da mídia e movedor de mercados.

Corona bomba

Se há um setor no qual o impacto do vírus também tem um lado positivo, é na mídia. Há os suspeitos de sempre, como a indústria farmacêutica, claro. Mas a diferença é que há de fato uma demora entre as ações de entes públicos e a aplicação prática de verbas. Na mídia, o efeito foi imediato. No Brasil, a audiência de todos os canais de TV, abertos e fechados, disparou e cresce “dia após dia”, segundo a agência de notícias da Folha de São Paulo.

Audiência do Jornal Nacional atingiu níveis que não eram vistos desde 2011, segundo o Kantar/Ibope.

A interpretação nas manchetes discretamente puxa a sardinha do crescimento na audiência para a necessidade de jornalismo sério em tempos de fake news, mas as matérias comemoram os resultados inéditos. Em tempos de coronavírus, é no mínimo falta de decoro festejar resultados oriundos de um noticiário monotemático, mas é impossível ignorar o que não se vê há quase uma década. Como o caso do Jornal Nacional, que na quarentena bateu resultados atingidos pela última vez em 2011, segundo o Kantar/Ibope. A audiência da TV paga no Brasil cai desde 2016, com a redução de 3,5 milhões de assinantes, despencando 9% só em 2019. Desde o coronavírus já registrou aumento de 12% no público.

O vírus também teve uma consequência positiva para o entretenimento e serviços de streaming, como o Netflix, inundado por assinantes. Segundo a agência de notícias Reuters, as audiências das quatro grandes redes de televisão dos EUA – ABC, CBS, Fox e NBC – vinham caindo nos últimos anos devido à forte concorrência de streaming, esportes e mídias sociais. Mas tudo mudou depois do surto do coronavírus. Séries de televisão aberta, que há anos apanham na audiência de serviços de streaming, registraram aumentos de mais de 20% na audiência desde o início da crise.

Internet, nem se fala

No exterior, o peso das mídias online, alternativas e sociais é solidificado e supera, com algumas exceções, a relevância da mídia tradicional. Apesar de a realidade brasileira não estar muito atrás, por aqui o ‘encanamento’ das verbas ainda escoa com mais facilidade – inclusive na internet – para o feudo da mídia tradicional. Contabilizadas as diferenças, um fato é comum: mais audiência, significa mais dinheiro.

Estudo da Comscore foi matéria discreta no New York Times.

Na quarentena, sem análise do mérito, o saldo dos levantamentos disponíveis é que as pessoas estão procurando mais notícias e estão dedicando mais tempo às matérias. Pesquisa de 20 de março da comScore, a mais respeitada ferramenta de medição de audiências na internet, mostra: desde o surto do covid-19, houve um aumento de 57% na audiência de sites de notícias, além de um impressionante crescimento 46% no tempo leitura. Sites de veículos mais conhecidos, como New York Times, Los Angeles Times, The Atlantic, Business Insider, Wall Street Journal e Wired “dobraram ou quase dobraram em acessos”.

A matéria interativa do Washington Post sobre o coronavírus de 14 de março é a mais acessada da história do jornal.

A matéria interativa do Washington Post “Por que surtos como o coronavírus se espalham exponencialmente e como ‘achatar a curva’” se tornou a postagem mais acessada da história do jornal, segundo revelou representante do próprio veículo ao NYT. O Buzzfeed, site de humor e notícias, registrou aumento de 44% no tráfego online. O Yahoo! News e HuffPost, sites noticiosos do Verizon Media, registraram 80% de crescimento disse Guru Gowrappan, CEO do grupo.

Números pesam, sim

É impraticável que resultados tão expressivos não impactem as decisões dessas empresas. Mesmo em instituições que se dizem tão isentas, há definições financeiras, estratégicas e editoriais que acabam por levar a mídia, e em especial a imprensa, a virar lenha na fogueira que tanto noticia. Mesmo que inadvertidamente… ou não. São muitos os casos, mas os exemplos absurdos são aqueles que não chamam tanta atenção; traduções equivocadas, dados destacados, viés editorial etc.

Um caso, por exemplo, é o “balanço da Agence France-Presse” onde ficou decretado que um terço da população mundial estaria sob “isolamento”. O tal balanço foi uma conta rápida feita pelo jornalista que escreveu “One third of humanity under vírus lockdown”, após a Índia, um dos países mais populosos do planeta, decretar medidas de isolamento. Mas, como uma das maiores agências de notícias do mundo, o peso da AFP sobre o noticiário fez com que um mero dado curioso, sem embasamento científico ou matemático, virasse um fato irrefutável, utilizado até por autoridades públicas como espécie de munição na discussão sobre o coronavírus.

Título criativo da AFP virou “balanço” em matéria de destaque no G1, do grupo Globo.

Outro exemplo, este mais polêmico, é o “isolamento social”. A Organização Mundial da Saúde não sugere isolamento social e sim “social distancing”. No Brasil, entretanto, a tradução desse “distanciamento social” virou “isolamento”, que tem um significado prático muito mais grave. A OMS sugere manter um metro de distância das pessoas, não as cumprimentar com apertos de mão, abraços e beijos. “Isolamento” é a medida que a OMS indica para pessoas que apresentem sintomas de resfriados, incluindo aqueles do covid.

‘Jornalista não erra, está apurando’

Tweet de jornalista confirmando a demissão que nunca existiu.

Mesmo quando o assunto é um chute, como a suposta demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, os principais veículos de imprensa tangenciam o tema coronavírus, sem de fato tratar do vírus. A cobertura jornalística do problema de saúde pública vira cobertura política, onde o que vale são análises, tom, fontes sigilosas etc. Assim, abrem-se as portas para voltar ao noticiário feijão e arroz dos últimos tempos, que rende cliques: guerra política de versões, onde fatos não importam e só contribuem para encher uma de duas piscinas ideológicas. O “furo” jornalístico da demissão, por exemplo, virou a fake news da semana já na segunda-feira.

A falta de parâmetros é tão grande que no noticiário sobre Mandetta uma âncora da CNN Brasil cometeu sincericídio ao reagir a um repórter que se desculpava por um erro e acabou, sem querer, resumindo o espírito do problema: “jornalista não erra, está apurando”.

Solução? A OMS orienta: assista menos à cobertura da mídia

A sugestão da OMS para evitar stress é não assistir à cobertura da mídia.

A própria Organização Mundial da Saúde reconhece os efeitos negativos da cobertura da mídia em relação ao surto do novo Coronavírus. Na página exclusiva de orientações da OMS no combate ao surto do covid, a dica é: assistir menos à cobertura da mídia sobre o caso. O documento “Coping with stress during the 2019-nCoV outbreak”, que dá dicas para combater o stress, orienta: assistir menos à cobertura da mídia “limita preocupação e agitação”.

A ideia não é propagar ignorância, pelo contrário. No mesmo documento a organização orienta as pessoas a se informarem. Mas diz para procurarem informações críveis, de fontes oficiais como o site da OMS.

A estridência do noticiário só ajuda na audiência, não contribui para acalmar ninguém; especialmente as lamentáveis vítimas, suas famílias e comunidades.

Tiago de Vasconcelos é jornalista e diretor do Diário do Poder

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