Alfredo Bertini

Enfim, quais os rumos da Cultura?

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Pelo estado de crise que tem passado a Cultura há exato um ano, tenho sido bastante “cobrado” a respeito, justo por uma opinião técnica e política. Acontece que, às vezes, no esforço da racionalidade, só a extensão do silêncio é capaz de promover a pertinência da reflexão, diante da imprevidência do impulso. Assim, por maior que seja a segurança que se tenha sobre temas de afinidade, recolher-se para um melhor entendimento de questões complexas e delicadas, de modo isento e responsável, é a melhor das estratégias.

Só agora, sinto-me imbuído desse propósito de mergulhar no debate. Sim, sem perder de vista a ponderação e daí apontar para os caminhos que possa julgar como os mais apropriados. Dessa forma, espero dar uma resposta mais embasada para os novos desafios da Cultura, sob o ponto de vista politico e técnico.

Dada a amplitude que a crise da Cultura está situada, desculpo-me pela inevitável extensão deste texto. Afinal, fez-se necessária uma análise mais acurada, que considere aqui aspectos como conceito, segmentação de mercado, desempenho do setor, diferentes variáveis envolvidas e tudo mais que dê substância ao que busquei investigar, particularmente, pela lente econômica, como entendo que deva ser tratada a Cultura. Creio que minha experiência como economista, pesquisador, autor, empreendedor e gestor público, com 25 anos de engajamento nesses distintos ofícios do setor cultural, são credenciais razoáveis para tal.

Cultura pode e deve
ser tratada pelo olhar
da Ciência Econômica

Assim, ao se tomar o viés econômico como ponto de partida e verdadeira essência desta abordagem, estabeleço aqui um critério próprio e temporal para iniciar minha análise. Nela, apelo pela essência econômica, apenas como meio de apresentação do peso e da extensão da cadeia produtiva da Cultura no Brasil. Tal vetor corresponde à base teórica que dá suporte à tese de que a Cultura pode e deve ser tratada pelo olhar da Ciência Econômica. Nesse ímpeto, procuro mostrar não apenas os aspectos econômicos dos distintos mercados que explicam a produção cultural. Fundamentalmente, faço o registro dos efeitos que decorreram do ambiente politico, justo aquele que se antecipou à mudança de Governo (2018).

Por fim, a análise se volta ao contexto atual, do acirramento politico entre os agentes público (particularmente, o Governo Federal) e os privados (produtores e artistas), até antes da recente mudança de pasta (Turismo). Pela visão pública, a decisão governamental de não reconhecer o mérito econômico do setor, de sorte que a politica inicial que lhe coube se vinculou a um Ministério com perfil de assistência social (Cidadania). Pela ótica privada, um setor que continua a operar à distância do conceito de empreendedorismo, sem regras de transição para o alcance desse estágio, o que exprime uma postura de forte dependência do Estado.

Em síntese, tem-se um contexto geral de evidente imobilismo, sem uma percepção da dinâmica econômica que está por trás da engrenagem cultural. Isso faz com que os agentes (público e privado) dessa atividade atuem desarticulados, sendo em comum apenas a falta de compromisso com os valores econômicos. O real extrato do que se tem em conta de ambos agentes é um mundo não tão “mágico” em 3 D, aquele que encanta as telas. Aqui, o 3 D espanta, pelo desconhecimento, pela desinformação e pelo desinteresse.

Desconhecimento do que seja conceitualmente Cultura e de que tudo do setor merece ser tratado pelo viés econômico.

Desinformação pela falta de registros estatísticos confiáveis.

Desinteresse, porque o setor cultural não é visto, sobretudo pela ótica da politica de desenvolvimento socioeconômico, como mercados heterogêneos capazes de gerarem empregos e rendas.

Nesse cenário, a inserção da Economia tem sido só efeito de retórica para discursos inflamados, seminários improdutivos e decisões abstratas sobre o tema. Tal comportamento faz com que a Cultura só se distancie de uma realidade inovadora. Em tempo de reconhecimento de fatores como a criatividade e a inovação, catalisadores do verdadeiro empreender, não tratar a Cultura pelo olhar da Economia é por em risco hoje a sustentabilidade de todas produções que resultam desse setor. Assimilar esse conceito – e sem preconceitos – é por a atividade cultural, com toda sua grandeza e pluralidade, no padrão meritório de quem é capaz de organizar seus modos de produção. E tudo isso se alcança num nível de reconhecimento capaz de exprimir uma legítima condição de se gerar empregos e fazer fluir as rendas. Manter-se diferente da exploração desse veio é continuar no romantismo, doutrinado apenas pelo “valor artístico” e, por conseguinte, umbilicalmente condenado a depender da (falsa) proteção das amarras governamentais.

Não tratar a Cultura pelo olhar
da Economia é por em risco hoje a
sustentabilidade de todas as produções

Nessa magnitude da expressão econômica, quem contribui para algo como 4% do PIB, gera empregos qualificados e remunera muito bem seus distintos colaboradores cria, de fato, um considerável “valor econômico”. E esse conceito não pode ser abandonado pela superação e exclusividade do chamado “valor artístico”, por melhor que seja estimada essa abstração, derivada de forma cabal da livre criação. Assim, como noutras formas de organização produtiva, não se trata de “produzir por produzir”. Como em qualquer bem que se molda pela força econômica, há por trás algum sentido de demanda, que o justificou ser empreendido. Isto é uma regra econômica básica. Enfim, uma situação que credencia qualquer setor produtivo a atuar como agente econômico, cabível de se submeter, direta ou indiretamente, às politicas públicas favoráveis ao desenvolvimento.

Nesta linha de raciocínio, a Cultura se revela também como exemplo. Para que possa ter “pernas” para caminhar na direção do seu desenvolvimento e que lhe permita ser sustentável, o setor já conta com benefícios econômicos específicos, seja por estímulos fiscais ou fundos de fomento. Eis aqui a grande contradição que se oculta há anos, como um pacto de convivência e conivência. Por um lado, os agentes privados pleiteiam e conquistam concessões e benesses da politica econômica, no argumento de se mostrar como exemplo de setor estratégico. Seguem, contudo, na contramão da via que tem como destino o indesejado mundo da Economia. Por outro lado, a esfera pública acata esse argumento e libera os programas especiais, mas sem que firme grandes compromissos com relação aos resultados econômicos. Resultado: percebe-se que ambos estão seriamente comprometidos pela fragilidade dos seus próprios entendimentos econômicos.

Ao se colocar tais defesas em favor do vetor econômico é claro que por trás está a presença do mercado. Desmistificar esse conceito único, falar da diversidade dos mercados e, por extensão, a ordem de grandeza da cadeia produtiva é um passo derivado dessa análise.

Esse é o papel que a análise econômica pode (e precisa) exercer, no sentido de tornar as atividades da produção cultural como partes integrantes e relevantes da Economia, em especial, num País de tamanha diversidade como o Brasil. E não me refiro aqui a generalidade da grandeza do Pais em si. O que quero acima de tudo destacar é a dimensão da cadeia de negócios que envolve as atividades culturais, justamente pela marcante heterogeneidade que as caracteriza. A ordem de grandeza é tão significativa, que não se pode dispensar o tratamento plural nem no nome. Seria melhor reconhecer o setor como da(s) Cultura(s) tamanha a diversidade e diferenciação.

Essa visão dual do setor é fato. Por um lado, são diversidades naturais, que se dão na produção, na distribuição e no consumo de cada arranjo produtivo, o que mostra a extensão da cadeia dos negócios da Cultura. No audiovisual, por exemplo, são inúmeras as produtoras, os distribuidores e os pontos de consumo de conteúdos. Por outro lado, são distinções que se dão dentro dos próprios setores (intrasetorial) e entre modos de produção diferentes (intersetorial). Ou seja, ao se manter aqui o exemplo do audiovisual, dentro dele próprio e em cada etapa da cadeia há enormes diferenças nos pequenos, médios e grandes agentes. E todas essas diferenças no modo de produzir são ainda mais evidentes se comparadas, por exemplo, com outra atividade distinta, como a produção teatral. Enfim, não parece ser tão simples o entendimento da Cultura como exercício necessário de um modelo econômico, haja vista tantas distinções. E por ter essa característica tão ampla e diferente, moldar um estilo único e próprio de política pública certamente representa um equívoco conceitual, que gera falhas inevitáveis na observação dos resultados.

Os avanços foram
discretos, quase nulos. Uma
verdade nua e crua.

Nessa visão de se incorporar, de fato, o vetor do negócio na matriz econômica, erram nas suas conduções os agentes públicos e privados. O setor público falha ao ignorar a amplitude da politica cultural, mesmo que essa ainda tenha o mínimo de respaldo da visão econômica. Isso por exercê-la sem conhecer as segmentações dos mercados e sem levar em conta a necessidade de ações diferenciadas e focadas. Erram os agentes privados que, por se sentirem mais artistas do que empreendedores, fazem dos seus ofícios estilos de produção desconectados da realidade econômica. Amparados, na maioria das vezes, por ideologias e doutrinas que fazem da Cultura mais uma extensão do protecionismo estatal sem limites, distanciam-se dos mercados como se esses fossem seus calvários e sepulcros. De ambas as partes, um realismo esdrúxulo e anacrônico.

Diante de toda essa complexidade, que aqui se observa, desde o próprio conceito do que seja Cultura e daí atravessa toda essa multiplicidade de caracteres que diferencia cada modo de produção, não se tem ainda como construir os alicerces de uma política que enxergue a força da Economia da Cultura (ou Criativa). Apesar de tantas referências e tantos debates, recheados pela emoção de discursos e textos abstratos, os avanços foram discretos, quase nulos. Uma verdade nua e crua.

Encarar os desafios significa exatamente romper com esses princípios. É sair do abstrato e partir para a realização, o concreto, que ponha a “cara” da Economia como protagonista da “cena cultural”. Isso implica: a) superar as abstrações conceituais; b) entender as segmentações dos mercados diante da extensão da cadeia econômica; c) criar registros estatísticos oficiais e confiáveis; e d) tornar as politicas culturais não só efetivas, como alinhadas com seus papéis no modelo de desenvolvimento social e econômico.

Foi com esse diagnóstico, que intencionava modelar uma proposta de politicas culturais afinadas com o perfil liberal da equipe econômica do então candidato Jair Bolsonaro, que me inseri de modo reservado nas discussões formulativas.

Até então fui muito mais economista do que propriamente gestor cultural. Naturalmente, que esse mix de experiências me ajudou na compreensão da engrenagem que move as produções culturais. Pude assim esboçar um diagnóstico técnico, cujo cerne maior foi dar-lhe o verniz de quem estima a relevância do valor econômico para a Cultura.

A partir desse ponto, tornou-se também essencial que agregasse à análise outras linhas de experiências. A vida me concedeu a oportunidade de vivenciar a própria dinâmica do fazer a Cultura, em especial, de empreendê-la, privada e publicamente. Assim, seria indispensável que meu papel de gestor cultural fosse incorporado na minha interpretação sobre os desafios da produção. Aqui, por um lado, valeu-me a experiência privada de ajudar a empreender um produto audiovisual de calendário. Dele extrai minha percepção do modo de produzir em ambiente privado. De outra parte, envolvi-me numa dupla experiência na gestão pública de âmbito nacional. Uma condição essa que me proporcionou uma visão setorial de largo espectro.

Dentro desse contexto de múltiplas percepções sobre o funcionamento do que chamo de mercados (assim mesmo, no plural, sem medo e preconceito), empenhei-me na contribuição propositiva, diante do embate eleitoral do ano passado. O peso do cargo que então ocupava, face à sua capacidade de articulação política, permitiu-me chegar ao ponto em que esperava.

Foi proposto um
Ministério da Cultura,
do Turismo e do Esporte

Já em março de 2018, a candidatura de Jair Bolsonaro emitia sinais de um provável êxito. Isso me motivou, entre outras razões que não cabem agora externá-las, a me aproximar da equipe econômica do candidato. Mais do que isso: em março, pela primeira vez, estava diante de Paulo Guedes, justo para defender essa visão econômica da Cultura. A partir dessa primeira agenda, minha missão foi tentar retirar do setor o peso de um modelo de produção vigente já superado, que poderia levá-la a perda de status nos planos do Governo. Nesse sentido, justo diante de quem se desenhava como o responsável pela condução da Economia, nada mais oportuno que condicionar a Cultura ao viés econômico e dai, tecnicamente, afastá-la da provável situação de apêndice.

Em cerca de meia dúzia de reuniões com Guedes no Rio de Janeiro, a missão do esboço econômico estava não só traçada como sugerida. A proposta até que poderia passar pelo fim da exclusividade ministerial, mas a junção e o status da Cultura seriam preservados, pela força e pelo dinamismo do seu viés econômico. Foi proposto, então, um Ministério da Cultura, do Turismo e do Esporte, onde essas áreas fossem consideradas e valorizadas como “produtos econômicos”, no rastro da chamada “indústria do entretenimento”. Minha percepção foi constatar uma reação de anuência, pelo menos até o momento em que a transição política se sobrepôs ao esforço de consolidação técnica.

Na nova contextualização, após em campanha se ter argumentado o equívoco de tratar a Cultura exclusivamente pelo viés educacional (apesar de áreas remotas de típica formação), o vetor político terminou por validar uma proposta ainda mais alternativa – a de cidadania. A partir desse momento, a decisão permitiu gerar uma “despreocupação” com o papel do setor. Criou-se daí um perigoso sinal de alerta, uma espécie de “estado de vigilância”, quanto ao uso dos recursos públicos e à liberdade de se produzir conteúdos “inadequados” à “conduta moral” do núcleo que formula e executa as principais decisões de Governo.

Essa postura, que poderia ter sido amenizada por outras vias, sem se ferir a essência dos princípios do Governo, acionou o “botão” dos conflitos entre os condutores da politica setorial e a chamada “classe artístico-cultural”. Mais preocupante do que a ausência de um mínimo diálogo entre as partes, justo pelos extremismos velados de ambos agentes, fica a certeza de que o trato do viés econômico continuou à margem. O Governo não se propôs até agora a fazer seus ajustes dentro de uma percepção balizada, respaldada por informações confiáveis e construídas num cenário de transição real ao empreendedorismo. Nem a classe cultural se mostrou flexível, pois sequer se colocou à mercê do novo desafio fiscal do poder público. Opôs-se a negociar alguns parâmetros sobre o futuro dos incentivos e fundos que lhes garantem vitalidade, porque o componente ideológico de negar por negar qualquer pressuposto minimamente liberal, fala mais alto.

Por essa configuração, o quadro que se desenha não oferece sintomas que apontem para outra situação: a do equilíbrio político com o toque refinado e moderno do papel econômico para a Cultura. Nem mesmo o recente reenquadramento do setor, dessa vez como integrante do Turismo, disse para que veio. Foi outro “alarme falso”, com relação à visão econômica, por maior que possam ser construídas identidades entre esses dois setores. Sem dar à Cultura um protagonismo compartilhado e sem que os desafios da chamada Economia Criativa sejam assinalados, a decisão pela nova definição orgânica parece não ser nada mais do que a troca das letras e nomes nas paredes do Ministério.

Nesse cenário de “corda esticada”, não se enxerga sinais de trégua. Quando as partes radicalizam e não querem, não há fé, milagre e santo que ajudem a construir os rumos de outra realidade.

Assim, os desafios da Cultura se mantêm no imobilismo e à mercê de mais entendimentos: técnicos e políticos.

Alfredo Bertini é economista e professor. É autor de “Economia da Cultura” (Ed. Saraiva, 2008). Foi Secretário Nacional do Audiovisual (2016) e de Infraestrutura Cultural (2017/18), do Ministério da Cultura.

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