Alfredo Bertini

E por falar em saudade, de talentos e gênios

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Em artigo que publiquei recentemente, fiz um reconhecimento à genialidade de Pelé nos campos de futebol. Para não perder o embalo do tema e diante de tantos atropelos e equívocos sobre o real entendimento do liberalismo, nada tão propício que trazer à baila um nome que a geração sub-40 pouco a nada ouviu ou leu a respeito.

Refiro-me à memória de José Guilherme Merquior, certamente que uma das maiores referências intelectuais brasileiras da segunda metade do século passado. Seu ideário de genuíno expoente do pensamento liberal, pela capacidade de metabolizar ideias, com erudição e elegância, foi algo tão marcante que impôs um merecido respeito até por parte dos seus mais ferrenhos adversários.

José Guilherme Merquior.

A genialidade de Merquior foi abatida com seu desaparecimento prematuro (49 anos), justo no auge da sua produtividade. Um desperdício já naquele tempo (1991), tamanho o viveiro de amebas intelectuais, que ainda desfilavam o tradicional besteirol à moda do que descrevia Sérgio Porto – k conhecido Stanislaw Ponte Preta. Em tempos atuais de retomada da polarização politica por ideários extremos, onde pouco se valoriza o efetivo papel do liberalismo na busca incansável por uma sociedade aberta (conforme sua obra prima Liberalism – Old and New), a ausência de Merquior representa uma perda irreparável.

Nesse sentido, é interessante se extrair da sua obra um viés de aguda sabedoria para entender que, na maioria das vezes, faz-se necessário entender as diferenças, mesmo que o alcance do seu objeto maior se torne mais longo. A imersão analítica de Merquior nos célebres debates entre Keynes e Hayek parece ser um bom exemplo. Por maior que fosse a essência dos pilares liberais na edificação do ideário de Merquior, essa verdade não o impediu de reconhecer o que ele veio a definir como “social liberalismo”. Ou seja, que se fazia necessária a construção de pontes, para que o dilema entre a liberdade de escolha e os direitos sociais fosse minimizado. Claro que não se trata da defesa convencional dos seus rivais a respeito da plenitude do poder nas mãos do Estado, o que seria uma espécie de “liberticídio”. Percebe-se que no âmago do repertório de Merquior há uma mínima preocupação com relação ao papel do Estado, no sentido de que, em nome de algumas questões socioculturais impregnadas na sociedade, considere-se um estágio de transição.

Eis aqui a sutil característica do ser liberal, que difunde suas ideias, desmistifica o socialismo, mas reconhece que os dilemas decorrentes desse conflito precisam ser politicamente negociados (liberdade individual x direitos e conquistas sociais). Creio que um bom exemplo seja o que lhe provocou a negativa de ser o ministro da Cultura do então presidente Fernando Collor. Por entender a amplitude dos valores culturais do País, discordou da proposição liberal de extinguir todas as conquistas do setor. Sua resposta de que a ousadia das mudanças teria o filtro do equilíbrio, reflete bem o título de um livro do então ministro da Educação, Carlos Chiarelli (não sei se foi fonte inspiradora): a ousadia do equilíbrio.

Esse foi o gênio Merquior. Um aluno dedicado da London School of Economics, que fez seu presidente Dahrendorf acreditar que não lhe merecia a função discente e sim de docente. Que fez Reymond Aron chamá-lo de um processador de ideias tamanha a extensão do seu conhecimento e da sua leitura. Enfim, alguém que mesmo arraigado aos seus princípios liberais teve serenidade para aceitar o que pregou e não conseguiu mudar. Que teve a sapiência necessária para entender as diferenças, mas de sugerir que, a partir delas, poder-se-ia construir pontes e daí alcançar seu sonho de uma sociedade aberta.

Salve, salve Merquior e toda sua erudição intelectual.

Alfredo Bertini é economista, professor e pesquisador. Foi Secretário Nacional do Audiovisual (2016) e da Infraestrutura Cultural (2017/18), do Ministério da Cultura. Recentemente, exerceu a Presidência da Fundação Joaquim Nabuco (2019), do Ministério da Educação.

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