Tiago de Vasconcelos

Ditadura existe, mas não no Brasil

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Teorias de conspiração insistem que o Brasil está a um passo do regime militar. Mas nunca estivemos tão longe da ditadura.

Pipoca nas redes sociais – e em um ou outro blog autointitulado “progressista” – o termo estratocracia, ou seja, a forma de governo onde o poder político é controlado por chefes militares. Segundo essas opiniões, esse sistema de governo seria apenas o primeiro passo para o destino final do Brasil sob Jair Bolsonaro: a ditadura militar. Por osmose. À primeira vista, a recente nomeação de mais um general para o Ministério do novo governo parece confirmar as suspeitas de alarmistas de plantão. Mas não é bem assim.

Primeiro é preciso definir governo militar e ditadura. Na História, é difícil desassociar das forças militares o poder, controle e governo. Até o advento da democracia representativa moderna, em geral mandava quem tinha o maior exército. Desde então existem governos que dançam na fronteira entre ditaduras autoritárias militares e repúblicas democráticas em formação, que passam por turbulência e mudanças, e cujos militares participam de forma inexorável desse processo. Devemos limitar esta definição, então, apenas àqueles governos que são ditaduras “clássicas”: Estados que reprimem liberdades individuais, a livre expressão e organização política, além de limitar o acesso à informação e controlar a abrangência de direitos.

Natasha Ezrow, professora sênior do departamento de governo da Universidade de Essex, admitiu à rede BBC que a maior parte dos especialistas em autoritarismo não têm uma definição, mas concordam que ditaduras acontecem “quando não há alternância de poder no Executivo”. Portanto não existe um só conceito universalmente aceito para definir quais países estão sob controle de um ditador, de um governo autoritário. Governos militares ou juntas militares são mais simples; segundo a Wikipedia, por exemplo, são apenas três países sob controle de um governo militar autoritário atualmente no planeta: Egito, Tailândia e Ucrânia, apesar de existirem dezenas de zonas de conflito armado em todo o mundo.

Há diferentes listas e considerações. No Brasil, o PT não classifica a Venezuela como uma ditadura, inclusive apoiou Nicolás Maduro desde sua gênese, sem críticas. Isso é, até a eleição deste ano. Já o PCdoB não considera ditadura os 40 anos de regime comunista de Enver Hoxha na Albânia (1944-1985). Pelo contrário, a admiração por Hoxha foi fator determinante para o alinhamento político do PCdoB, que continuou a apoiar o partido do ditador (PTA, o PT da Albânia) mesmo após a sua morte na década de 80. Dirigentes do partido até se mudaram para Tirana, capital albanesa, de onde eram transmitidas informações sobre o Brasil através da “Rádio Tirana”. Os dois partidos tampouco consideram ditatorial o regime de Cuba, ilha controlada pela ditadura castrista desde 1959; um dos mais claros e longevos símbolos de falta de alternância de poder na História moderna.

Claramente cada ideologia tem sua própria forma de definir quem é ditador e quais países são ditaduras. Mas o levantamento mais respeitado do mundo vem da Freedom House, ONG americana fundada em 1941. É a autora do principal levantamento anual sobre liberdade política, direitos humanos, liberdade de imprensa e de internet. Segundo o relatório, existem hoje 49 ditaduras entre 210 inscritos (193 países-membros das Nações Unidas, Palestina e Santa Sé, a “pessoa jurídica” do Vaticano, além de principados como Mônaco, entre outros). Curiosamente a ONG inclui na lista de ditaduras dois membros do Conselho de Segurança da ONU; Rússia e China.

É importante entender a metodologia adotada pela Freedom House. Nem todos os ditadores são líderes militares, assim como nem todos os líderes militares são ditadores. Na verdade, as pessoas que ocupam os cargos pouco têm a ver com o grau de democracia de um país. É o contrário: líderes de países que não são considerados livres, são ditadores. O que vale são as consequências das decisões políticas e – na prática – o nível das liberdades oferecidas aos cidadãos daquele país.

Funciona assim: foram definidos 40 pontos de direitos políticos e 60 pontos de liberdades civis, depois traduzidos em perguntas. São questões como “Mulheres são permitidas a registrar e lançar candidaturas nas eleições?”. Se a resposta for sim, o país ganha um ponto. Como é de se esperar, nações da Escandinávia são as únicas a obter pontuação perfeita; o Canadá, por exemplo, conseguiu 99/100. O Brasil tirou 78. Nosso vizinho Uruguai, 98. No Oriente Médio e na África a regra é a falta de liberdade. Na Síria, o último da lista, a pontuação é negativa: -1. Essa pontuação depois é traduzida numa escala que divide os países entre Livres, Parcialmente Livres e Não Livres. Ditadores são os líderes das regiões inscritas como “Não Livres”. O Brasil é o 73º país mais livre do planeta, os Estados Unidos, o 53º, segundo a Freedom House.

Nessa lista estão classificados como ditadores Bashar al-Assad (Síria) e Nicolás Maduro (Venezuela). Raúl Castro e seu sucessor, Miguel Diáz-Canel (Cuba), são ditadores. Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China) e o Rei Salman bin Abdulaziz Al Saud (Arábia Saudita) também. O Brasil está longe da lista de “Não Livres”. Aliás, existem 88 países menos livres que o Brasil, mas que ainda são considerados Livres ou Parcialmente Livres. Estamos no mesmo nível da Índia (77/100) e de Israel (79/100). A maior concentração de ditaduras está na África subsaariana (19), Oriente Médio e África no Norte (12). Nas Américas, apenas Cuba e Venezuela entram na lista. Veja abaixo a lista dos 25 países e regiões menos livres do planeta.

Os 25 países menos livres do mundo. Fonte: Freedom House/2018

Não é a nomeação de militares para posições estratégicas num governo que define uma ditadura. É a falta de liberdade. E esse não é o caso do Brasil. O simples fato de existir a possibilidade de críticas às nomeações políticas do presidente eleito é prova de que vivemos numa democracia. O que custou pontos ao nosso país foi principalmente a corrupção do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) escancarada pela Lava Jato. Também entrou na conta a falta de transparência das informações públicas, casos de trabalho escravo, perseguição a jornalistas, milhares de mortes por assassinato, e crimes contra negros e membros da comunidade LGBT. Mas a categoria onde o país mais sofre é a “Rule of Law”, ou o “Estado de Direito”; o Brasil pontuou apenas 56%. Nessa categoria entram o perigo de grupos como o MST à propriedade privada, a independência relativa do Judiciário e a atuação percebida das forças policiais.

Quarto país mais livre do mundo, o Canadá perdeu um ponto por “problemas com a população indígena”, que, apesar de compor apenas 4% da população geral, representa cerca de 25% da população carcerária. Já o Uruguai perdeu dois pontos pela lerdeza do Judiciário e também por deixar de evitar o tráfico nacional e internacional de pessoas e drogas, além de diversos casos de trabalho escravo. Veja abaixo a listas dos países mais livres do mundo.

Os 25 países mais livres do planeta. Fonte: Freedom House/2018

Todos os dados constam no relatório Freedom in The World 2018 e as informações são relativas a 2017. Isso quer dizer que vamos ter que esperar até 2020 para ter o primeiro estudo dessa ONG que vai contabilizar o primeiro ano de governo Bolsonaro.  Até lá uma coisa é certa: ditadura existe, mas não no Brasil. À medida que o tempo passa, ficamos cada vez mais longe do genuíno regime militar brasileiro, aquele que acabou em 1985.

Tiago de Vasconcelos é Diretor de Redação do Diário do Poder

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