Francisco Maia

Dicionário de utopias

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É bom desconfiar sempre das enormes dificuldades, pois no seu corpo pode estar oculto um vendedor de facilidades. Assim é o rosto de certas políticas públicas que atravancam a vida das classes produtivas. Entre dez empresários, sete consideram que o novelo burocrático do Brasil obriga o governo a gastar mais e pior que o necessário, diz uma pesquisa de consultores paulistas. Tanto quanto o aumento das despesas, o volume da papelada alimenta a corrupção, dificulta os negócios, afeta o trabalho, assim como é um dos principais obstáculos ao desenvolvimento do País.

Todos que produzem, consomem, trabalham, estudam e se locomovem têm a ingrata companhia do símbolo do atraso: a instituição do despachante. Os CEOs de empresas internacionais têm extrema dificuldade em explicar a seus acionistas a necessidade desse personagem. É incompreensível que os negócios e a vida dos cidadãos precisem de um intermediário entre o público e o privado.

O pensador Max Weber, já no primeiro tempo do século passado, diagnosticava que a burocracia é a forma mais racional do exercício de dominação. Faz uma oferta de dificuldades para cada solução, verdadeira alquimia em transformar o fácil no difícil, pelo uso do inútil.

A complicação burocrática vem de muito longe. Antes da invenção das ferramentas, as civilizações viviam do comércio. As práticas comerciais, falando em português, começaram a ser desenvolvidas, no tempo em que o Brasil festejava seu aniversário de 21 anos. Tudo, pela clarividência do rei de Portugal, Manuel I, o D. Manuel, o venturoso. Foi a complexidade do tesouro do real que levou o monarca a promover uma reforma do Estado, e para isso editou o estatuto da organização político-administrativa, que foi batizada como Carta das Ordenações Manuelinas. Elas não modificavam apenas as questões de Estado, mas sobretudo iniciam, de forma organizada, uma intervenção na economia, negócios, no comércio marítimo, nas compras e vendas internas e no tabelamento de preços. Foi uma eficiente reforma administrativas, que hoje tanta falta nos faz.

Os anos voaram e quase três séculos depois, finalmente o comércio, com C maiúsculo, chegou na vida dos brasileiros. O Príncipe Regente dom João VI, ameaçado por Napoleão, resolveu mudar de casa. Toda a família real, com tralhas e cangalhas, desembarcou no Brasil. A cidade de Salvador, na Bahia, festejou por 15 dias a visita de uma rainha doida e seu soberano filho regente. Visita curta, mas altamente eficiente.

Como primeira decisão, abriu o comércio do Brasil às nações amigas. Fez de Salvador e Rio de Janeiro as portas do Brasil para o mundo e lá plantou a semente do culto ao comércio. Para quem nada tem, o pouquinho já é muito. Com o esplendor da liberdade em finanças, começou também a prática infeliz de uma burocracia lerda e confusa. É bem possível até que ali tenha nascido nosso primeiro despachante.

Como cereja desse bolo, no conjunto das novidades, os brasileiros passaram a conhecer a prática de um comércio organizado, que desde aquele tempo já clamava contra os abusos do Estado e pelo comportamento justo do cidadão nos negócios.

Reunidos na Praça do Comércio, sobre o olhar cuidadoso do Conde dos Arcos, os comerciantes lançaram as primeiras pedras que sobre as quais surgiria, em 1811, a Casa do Comércio, mais tarde conhecida como Associação Comercial. A associação era da praça, porque da praça era. Lugar em que se discutiam as vendas, as cotações de produtos e a discussão das falhas do governo. A praça era tão importante que emprestava seu nome para punir os maus negociantes. Aqueles que descumpriam as regras de convivência e equilíbrio nos negócios, lamentavelmente ficavam com o “nome sujo na praça”.

Percebe-se que a antiga peleja entre a eficiência e a inépcia, vem de muito longe. Hoje, mais que nunca é necessário lutar pela simplificação da vida empresarial. Felizmente as forças vivas do país, até hoje, com enorme sacrifício, têm sobrevivido. Graças também a uma contradição, identificada pelo grande fiscal da liberdade americana, Eugene McCarthy: “a única coisa que nos salva da burocracia é a sua própria ineficiência.” Perigosa contradição, pois seu uso descuidado pode abrir portas e janelas à corrupção.

Dois grandes heróis das liberdades do espírito e do bolso deixaram afirmações que são um legado. Padre Vieira advertiu, que “em nenhum lugar dessa terra, se gasta tanto papel, ou se gasta tanto em papéis”, enquanto Roberto Campos, lanterna da proa para o futuro, sentencia que às vezes “nossas legislações são uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa do efêmero.”

Francisco Maia é presidente do Sistema Fecomércio-DF (Fecomércio, Sesc, Senac e Instituto Fecomércio).

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