Pedro Rogério Moreira

Diário da pandemia

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Nunca fui um sujeito organizado. Nunca tive “uma cabeça bem mobiliada”, como diz um jornalista baiano sobre as pessoas certinhas. Agora mesmo, depois de escrever essas duas linhas precedentes, já interrompi a escrita da crônica por três vezes. A primeira para atender o telefone, a segunda para apreciar no WattsApp um vídeo-piada sobre a pandemia (como eles têm se multiplicado!), a terceira para acudir meu gato que reclamou por não ter grãos no seu vasilhame aqui do escritório. O telefonema merece registro: era o doutor Omar informando que recebeu a tomografia do molar esquerdo e graças a Deus não tenho que ir ao seu consultório. Mas sua informação acessória é espantosa: nos últimos três meses quadruplicou os casos de trincamento de dentes. O brasiliense tem comido mais e mordido com raiva. Bala perdida da pandemia.

Sempre trabalhei em empresas muito bem organizadas mas poucas vezes compartilhei com a minha secretária os horários a cumprir. Era a cabeça mal mobiliada. Me ferrei muitas vezes, atiça-me a lembrança um volume de Carlos Drummond à minha frente: no remoto 2002 perdi a sessão da Câmara dos Deputados em homenagem ao centenário do poeta. E eu prometera presença ao organizador da homenagem. Raios!

Mineiro perde a poesia mas não perde o trem: jamais faltei a uma reunião de trabalho. Grandes coisas! Era o mínimo, seu Pedro!

Minha biblioteca é desorganizada. O Eça está ao lado de um livro de botânica. Tem gente que organiza até adega: português pra cá, italiano prá lá, francês na prateleira de baixo. A minha semelha-se a uma feira de Istambul, e, sendo tinto, a primeira garrafa que agarro é a que vai para o papo. Já o guarda-roupa não, é organizadinho pelas outras duas mãos que há mais de quarenta anos tenho grudado no meu corpo, como a deusa Shiva. Jamais abrirei a gaveta dos pijamas se quero vestir uma bermuda. Já os papéis pessoais, ah! Sabe aquela certidão de casamento que você precisa dela com urgência, para selar a venda do apart-hotel de Belo Horizonte, desvalorizado em 25% pela recessão da Dilma e outros 25% pela pandemia? Pois é. Que aborrecimento a solicitação ao cartório do Rio! E você solta impropérios para todo lado, mas nunca se culpa da cabeça mal mobiliada que o faz esquecer que Shiva guardou o documento bem guardadinho na pasta verde.

De modo que minha desorganização não fez da pandemia um pandemônio. O cronista estava bem equipado para enfrentá-la. A peste me poupou até de aborrecidas ações cotidianas, como ir ao mercado, à padaria, à farmácia. Só tive que me inglesar no vocabulário da pandemia. O delivery cuida do pão de cada dia e da pasta dental. O computador, o smarthphone, o laptop tornaram-se o centro da vida para mais de um bilhão e duzentas mil pessoas, li outro dia. Não preciso mais ir de terno e gravata às repartições de Brasília para cuidar do interesse dos meus chefes: falo com a burocracia pela videoconferência no meu home-office. O aquartelamento obrigatório para evitar as consequências da terceira guerra mundial, gerador do sentimento de claustrofobia, pouco me afetou: eu já havia abolido as flanadas noturnas, nas quais uma cabeça mal mobiliada pode causar problemas na vida privada, como me tem mostrado a leitura do sábio Balzac na sua Comédia Humana que adquiri no Sebinho da Asa Norte para enfrentar o longo inverno viral com seus dezessete volumes. Sem as flanações noturnas, obtive a harmonia doméstica, e, tendo feito de casa meu próprio bar, posso depositar no altar de Shiva a economia produzida.

Desgraçadamente, milhares de brasileiros não vivem a boa vida deste cronista de cabeça mal mobiliada. Eles se arriscam diariamente no transporte lotado, na convivência no trabalho e no intercâmbio afetivo com suas famílias. Na falta de uma vacina e de hospitais acolhedores, e também na ausência de um líder que lhes dê esperança – porque esperança é um remédio muito bom – torço para não lhes faltar um São Francisco de Assis, o protetor dos humildes.

Os filósofos adamados que pululam agora na televisão dizem que o mundo será outro após a pandemia. O mundo está mudando muito mesmo. Já foi novo a partir de 2001, quando apareceu o vírus do terrorismo planetário. O século que então se iniciava acabou na destruição das torres gêmeas de Nova York. Mas o século que se abriu em nossas mentes com esse “novo mundo” sob o medo do terrorismo durou apenas dezenove anos! Terminou no carnaval de 2020, dizem os infectologistas. Que venha então o segundo “mundo novo” em vinte anos de um mesmo século! Mas que venha sem o vírus desmascarado no despreparo de hospitais, sem desemprego em massa, sem degradação ambiental, sem a desesperança de termos um líder que faça valer a pena a luta, tendo uma cabeça bem mobiliada.

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