Dante Coelho de Lima

Dez anos de saudades

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DEZ ANOS DA PARTIDA DE DÁRIO CASTRO ALVES, DEZ ANOS DE AUSÊNCIA DE UM AMIGO, DEZ ANOS DE SAUDADES.

No dia 6 de junho de 2010, deixou-nos, na sua Fortaleza de nascimento, um inesquecível personagem do Itamaraty, o Embaixador Dário Moreira de Castro Alves. Eu estava servindo em Belgrado e soube no dia seguinte, ao ler a versão digital do Boletim Diário, a nossa popular “Bola do Dia”. Fiquei muito triste.

Escrevi uma carta ao colega Manuel Innocencio, seu enteado, manifestando meu solidário pesar.

Em junho último, o décimo aniversário da última viagem de Dário passou, desgraçadamente, despercebido de todos nós, talvez por estarmos todos consternados com os efeitos da COVID-19, este vírus global e mortal, que deu (e continua a dar) a tantos brasileiros a mesma morada final do nosso amigo Dário.

Colegas e amigos me estimulam a dar publicidade à triste efeméride.

Divulgação um pouco tardia, decerto, mas inescapável naquilo que tem de depoimento do sentimento de desconsolo que se apossou de mim e de todos que tanto o admiraram e respeitaram.

Admiração e respeito perenes, pois que, igual que nossa tristeza, não obedecem a limites temporais. Se me permitem, conto a seguir:

Querido amigo Manuel,

Soube ontem.

Foi-se uma das mais deliciosas figuras do nosso ofício. Muitos colegas e amigos, sobretudo Pedro Bretas e João Solano que convivemos em Lisboa, terão sido testemunhas insuspeitas e frequentes do respeito e carinho que eu e outros devotávamos (e agora in memoriam) àquele amigo, mais velho que nós, claro (mas só um tiquinho), e companheiro de almocinhos memoráveis que se davam às terças-feiras,  numas tascas de Lisboa e arredores que só ele sabia existirem.

(Acrescento aqui, à mensagem original que, nessas empreitadas gastronômicas, seguia-se à risca um código de regras básicas. A tasca/restaurante não podia ser repetida/o, teria que ser inédita/o, nunca frequentados pelos comensais, muito menos por ele, Dário (o que naturalmente levava o amigo da vez encarregado da escolha a uma frenética busca de locais conveniente e consentâneos em Lisboa e cercanias).

Tomava-se o vinho da casa e a despesa era custeada por quem coubesse a escolha do local.

E lá íamos nós, conduzidos pela mão segura do Canhão, esse fiel motorista do Embaixador Dário, com seu alto poder de fogo em matéria de dedicação, ao volante da sua Mercedes. Detalhe importante, pois só assim poderíamos nos avinhar à vontade, sem precisar usar nossos próprios automóveis.

Essas regras só foram violadas uma vez, por ocasião da despedida do amigo Pedro Bretas, quando este insistiu em repetir o Barrete Saloio, restaurante de Bucelas, na grande Lisboa).

Pedro Brêtas, Dante Coelho de Lima e o embaixador Dário Castro Alves.

Muitas vezes o querido Embaixador tomou-me pela mão a mim, ao Pedro e ao João e nos fez percorrer com ele a trajetória cultural, mas não só, de sua Lisboa (Grêmio Literário, Círculo de Eça de Queiroz, Solar do Vinho do Porto e outros grandes templos de cultura e casas de pasto). Agora e nunca mais poderei invocar Lisboa, Eça e arredores, e tudo que Portugal me inspira, sem lembrar da companhia impecável desse fervoroso e dogmático praticante do credo do bom viver.

Pela sua agenda repleta de atividades e compromissos, para alguns lisboetas ele era o verdadeiro Embaixador do Brasil, quem quer que ocupasse a cadeira de chefia, ali na Quinta das Mil Flores.

Foi-se deste mundo na sua Fortaleza natal com a dignidade com que sempre viveu, decerto embalado na nostalgia dos tempos de intensa atividade acadêmica e social e do imenso prestígio que sempre angariou, para si e para o Brasil, nas suas funções diplomáticas, mesmo quando já gozava de uma dourada aposentadoria que o Governo português lhe outorgara em Lisboa. Ali passaria seus últimos anos envelhecendo ao lado de sua Rina (enquanto essa viveu) “como o cipreste e o cedro que envelheciam juntos, como dois amigos num ermo” (Eça de Queiroz, os Maias).

Espero que o Itamaraty venha a resgatar esse acervo de dívida que agora nos lega o Dário.

Espírito nublado aqui em Belgrado. Meu domingo escureceu mais cedo e olha que eu estava celebrando hoje um dia de sol, depois de muitos cinzentos e chuviscosos. “É Belgrado e chove”, torrencialmente na minha alma, parafraseando o título do livro mais conhecido de Dário “Era Lisboa e chovia”.

Dos colegas e amigos Dário logo mereceu muito cedo a carinhosa alcunha de Reizinho.

De fato, assim era, pois Dário reinou, soberano e absoluto, na arte de fazer amigos e nunca esquecer deles. Ser súdito do seu Reino já era por si só um privilégio. Acho que o tive.

Foi meu Chefe na Divisão do Pessoal, ainda no Rio, eu sendo Oficial de Chancelaria. Grande sentido de humor, tinha sempre uma anedota pra contar. Um dia voltando do SERPRO, órgão que processava nossas folhas de pagamento, na companhia de meu chefe imediato, o teuto-baiano Adolf Westphalen, reclamamos com ele que o funcionário do SERPRO quase nos “comeu vivos” pelos muitos erros que havia nas fichas financeiras que tínhamos mandado pra preparar os holeriths (como eram então conhecidos os nossos contracheques). Dário, com muita graça, reagiu, dizendo:

– Bem, espero que tenha sido no sentido antropofágico, pois vocês dois são duas das minhas últimas esperanças nesta Divisão.

Na sua simplicidade, Dário nunca personificou a figura clássica do Embaixador de punhos de renda, nem de abotoaduras (expressão que me habituei a ouvir a respeito de Paulo Tarso Flecha de Lima, um homem de um Itamaraty moderno, e sempre à frente de seu tempo). Nosso amigo Dário era um intelectual, devorador de livros, e escritor deles, possuidor de uma cultura riquíssima, traços que sempre marcou sua extraordinária vida de diplomata. Tomou-se de paixão por Portugal (e foi  decerto correspondido), sua história, sua arte e cultura e seus escritores. Quis ser até um deles, penso eu.

Dedicou-se com paixão e prazer à obra de Eça de Queiroz, sobre a qual ergueu os pilares de sua própria produção literária.

Dário agora reencontra suas velhinhas ex-esposas Diná e a querida Rina, que ele mandou lá pra cima antes, decerto para que não lhe faltassem as pantufas e o invariável vinhozinho do porto. E na mesa ao lado, claro, o pessoal que frequentava o Ramalhete e os cafés lisboetas.

– C’est grave! C’est extrememente grave”, diria o Conde de Steinbroken, personagem dos Maias.

É o que me cabia dizer…

Dante Coelho de Lima é diplomata.

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