Flavio Faveco Corrêa

Desaforo privilegiado

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Eu não sei quem é o autor dessa expressão, mas ela é ótima.

Este tema, surrado e recorrente, voltou ao noticiário graças ao senador Flavio Bolsonaro e suas rachadinhas.

Enquanto isso, o Coronavirus dispara servindo de pretexto para que funcionários, autoridades públicas e seus comparsas  “empresários” roubem à vontade, fazendo compras estapafurdias sem licitação e controle. Como o Brasil é um país bizarro, tem respirador regado a vinho em Manaus (afinal foram comprados numa distribuidora especializada nessa bebida). Diz o humor negro que tem paciente que não quer ter alta…

Tem também teste que não testa, máscaras que só servem de enfeite (a do Corinthians está na moda), álcool em gel falsificado, hospital de campanha que é desativado antes que a pandemia chegue ao pico,  fraude bilionária no auxilio emergencial, cestas básicas superfaturadas e outras tantas modalidades de crime que a nossa vã filosofia não alcança. Estes ladrões são verdadeiros homicidas, para não dizer genocidas. Como não existe pena de morte no Brasil, eles deveriam ser confinados a ambiantes cheios de vírus para que contraissem a doença e sentissem na própria carne os efeitos da Covid-19. Talvez assim aprendessem a lição.

Voltando à vaca fria, segundo a Folha de S.Paulo existem quase 60.000 brasileiros que se beneficiam do tal foro especial por prerrogativa de função. A Constituição de 1988, que tornou o Brasil praticamente ingovernável, foi dadivosa demais ampliando desmesuradamente a abrangência do execrável instituto. Além do presidente e do vice, estão mamando nesta teta todos os ministros, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, todos os governadores, prefeitos, senadores, deputados federais, juízes, membros do MP (federal e estaduais), chefes de missão diplomática permanente, ministros do STF, TST, STM, TSE, da PGR, do TCU, conselheiros dos tribunais de contas estaduais. Esse monte de gente têm julgamento especial quando são alvo de processos penais. Uma afronta ao artigo 5º da Constituição que reza que todos nós somos iguais perante a lei. Ledo engano.

Levantamento do jornal O Globo informa que “o foro privilegiado das autoridades brasileiras não tem paralelo no mundo”. Analisou 20 países e constatou que nos Estados Unidos, por exemplo, nem o homem mais poderoso do mundo, o presidente Donald Trump, tem o benefício. Na Alemanha, a primeira ministra Ângela Merkel tem tratamento comum. Na Inglaterra, só a rainha tem foro privilegiado. Por aqui é este festival em busca de impunidade.

O consultor legislativo da Câmara dos Deputados,  Newton Tavares Filho, pesquisou 16 países e concluiu: “o foro privilegiado das autoridades brasileiras não tem paralelo no mundo”.

Eu me lembro da época em que bicheiros e outros contraventores pagavam caro por votos para se eleger para a Câmara ou Senado, apostando na morosidade da justiça. Hoje está mais barato. Foi democratizado o acesso a esse indecente manto protetor. Graças às constituições estaduais, deputados das assembléias legislativas, vice prefeitos e vereadores também estão nessa. Alguns estados (dá para acreditar?) estendem o benefício para os chefes de polícia e de bombeiros. O negócio é tão surrealista que o vereador Carlos Bolsonaro, que está às voltas com os  crimes de rachadinha e de contratação de funcionários fantasma para seu gabinete, pretendeu o privilegio, que lhe foi negado pelo STF. Logo ele que, junto com seu pai e irmãos, era contra. Eram…

Também veio em boa hora a decisão da Suprema Corte, de conceder o benefício somente para os crimes cometidos no exercício do cargo, o que desafoga um pouco o STF, que tem dificuldade de dar andamento a todas as ações penais que envolvem políticos. Estudo da FGV Direto Rio mostrou que apenas 0,74% dos processos concluídos no Supremo, entre 2011 e 2016, resultaram em condenação.

Deve ter sido para “desafogar” um pouco mais o Tribunal que as ações envolvendo caixa 2 foram remetidas para a Justiça Eleitoral, onde, como se previa, não aconteceu nada. Agora a Lava Jato encontrou uma saída jurídica para denunciar José Serra e evitar as restrições do Supremo. O Ministério Público o acusa de ter recebido propinas milionárias no caso do Roboanel (robo, e não rodo). Será que ele escapa dessa?

A verdade é que a Constituição Cidadã transformou o STF em depósito de ações de todas as espécies. Quase tudo virou matéria costitucional. Enquanto a Suprema Corte dos Estados Undios (9 ministros) julga cerca de 150 casos por ano, a do Brasil julga milhares. Talvez seja por isso que precise de uma super estrutura: mais de 200 funcionários para cada ministro, ao custo de mais de meio bilhão de reais por ano. São 194 recepcionistas, 85 secretárias, 24 copeiros, 27 garçons, 293 vigilantes, 116 serventes de limpeza, 7 jardineros, 6 marceneiros, 19 jornalistas, 5 publicitários, 10 carregadores de bens, 19 funcionários de encadernação, 87 veículos, 58 motoristas, mais professor de yoga e de respiração.

É  claro que boa parte da culpa está no foro privilegiado. Um desaforo que, entre outros tantos,  ainda não conseguimos vencer.

Faveco Corrêa, jornalista e publicitário, é sócio da Brandmotion Consultoria Empresarial, Fusões e Aquisições.

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