Eiiti Sato

Democracia, representação política e desempenho econômico

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Há mais de uma década a economia brasileira vem crescendo bem menos do que a economia mundial. Muitas explicações podem ser apontadas para o baixo desempenho da econômica brasileira e uma delas é o mal funcionamento do sistema político. Ninguém mais duvida de que a democracia é o sistema político mais bem sucedido ou, nas palavras de Winston Churchill, “ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.” O problema é que, no mundo real, a democracia pode ser praticada de muitas maneiras e a qualidade dos resultados do processo decisório democrático depende fortemente dessas práticas. A democracia significa que o povo detém em suas mãos a prerrogativa de fazer escolhas, mas esse fato não garante que as escolhas serão sempre boas e sensatas. Tal como ocorre com os indivíduos, as coletividades também podem fazer tanto escolhas boas e sensatas quanto escolhas ruins e equivocadas.

Este breve ensaio procura discutir o fato de que a forma de ver e de praticar a democracia pode influenciar as escolhas e pode explicar porque algumas democracias são mais prósperas do que outras, e porque o desempenho econômico de uma nação com tanto potencial como o Brasil continua decepcionante.

A representatividade política na prática da democracia

Os debates entre as distintas formas de entender a representação política é antiga e envolve questões essenciais que definem o próprio sentido da democracia. Com efeito, entre as ideias centrais dos artigos que compunham “O Federalista”, estava o argumento de que a confederação, que havia proporcionado a união das treze colônias na luta pela independência, deveria dar lugar à federação, para formar uma nova nação: os EUA.

Os federalistas entendiam que, ao formar uma nação (federação), os representantes das treze colônias americanas deixavam de ser “advogados” dos interesses das colônias de onde vinham para se tornarem membros de um Congresso que deveria representar a nação que estavam formando. Sob esse entendimento estava o pressuposto de que as 13 colônias que haviam se juntado para lutar contra os ingleses pela independência, poderiam tornar-se mais fortes e mais prósperas se formassem uma só nação forte e unificada.

É notável que Edmund Burke – do outro lado do Atlântico, e integrante da democracia inglesa, a grande potência que seria dominante no século XIX – percebesse de modo muito semelhante aos Federalistas, que era um grande equívoco entender que a prática da representação política numa democracia poderia ser interpretada como a defesa de interesses regionais, locais ou corporativos: “O Parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diferentes e hostis, cujos interesses cada um deve assegurar, como um agente e um defensor, contra outros agentes e defensores; mas o Parlamento é uma assembleia deliberativa de uma nação, com um interesse, o da totalidade – em que nenhum propósito local, nenhum preconceito local, deveria guiar, exceto o bem comum, resultante da razão geral da totalidade. Você escolhe um membro, de fato; mas quando você o escolhe, ele não é mais membro de Bristol, mas do Parlamento (Britânico)”.

Tanto para Alexander Hamilton e os Federalistas quanto para Burke, a existência da União se justificava porque, ao formar uma União, as ex-colônias, no caso dos EUA, ou o condado de Bristol, no caso de Burke, não poderiam atingir objetivos de segurança e de prosperidade em níveis que somente a União poderia proporcionar. Em outras palavras, somente a União tinha condições de oferecer recursos materiais, facilidades e amplitude de mercado, e outros bens públicos que cada estado ou província, individualmente, não tinha condições de criar e oferecer.

A prática da democracia no Brasil

Infelizmente, no caso do Brasil, a ideia de representação política tem sido muito diferente daquela recomendada por Burke e pelos Federalistas. Deputados, senadores e outras autoridades têm entendido que nas suas funções os interesses locais, regionais e corporativos devem vir antes da nação. Além disso, esse é um entendimento compartilhado também pelo jornalismo político e pelos analistas, que acham “legítimo” que os políticos, antes da nação, pensem em primeiro lugar no seu Estado ou na corporação que o elegeu e até mesmo nos seus interesses pessoais.

Um exemplo corrente são as discussões em torno da proposta de reforma da previdência. As preocupações se concentram na ideia de que a missão de deputados e senadores é “salvar” os interesses corporativos que representam. Até mesmo o Executivo que, apesar de ser o autor da proposta de reforma, sem hesitar, incluiu até mesmo uma generosa revisão de salários da carreira dos militares nos debates sobre a reforma do sistema de previdência social. O fato é que, nesses debates, as discussões e as iniciativas, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, têm levado muito pouco em conta os efeitos de um sistema previdenciário deficitário sobre o comprometimento da capacidade do Estado brasileiro de cumprir adequadamente seu papel de provedor de bens públicos essenciais para a nação. A maior parte do que tem sido chamado de “custo Brasil” decorre dessa incapacidade do Estado brasileiro de prover bens públicos essenciais (segurança pública, justiça eficaz e rápida, boas estradas, sistema ferroviário, burocracia menos onerosa e mais honesta, etc.).

Com efeito, como explicar o fato de que o pagamento de aposentadorias, pensões e outros custos previdenciários consumam 53% das receitas fiscais, a não ser por sucessivas decisões – sobretudo do Congresso e do Poder Judiciário – no sentido de distribuir generosos benefícios com dinheiro do Estado a categorias e segmentos tanto do setor público quanto do setor privado? Retirar Estados e Municípios do projeto de reforma da previdência social não tem qualquer relação com o bem comum da nação brasileira, revela apenas o quanto os interesses locais, regionais e corporativos prevalecem sobre a ideia de nação.  O fato é que no orçamento previsto para 2020, nada menos do que 94% das receitas fiscais estão comprometidas com gastos obrigatórios (salários dos três poderes, aposentadorias e pensões, transferências para Estados e Municípios, subsídios e benefícios sociais, etc.) apenas 6% das receitas podem ser gastas de forma discricionária, isto é, com o pagamento de qualquer despesa não obrigatória (investimentos, manutenção de instalações e equipamentos, consumo de material, energia, etc.). Apenas como referencial, nos EUA cerca de 1/3 das receitas públicas são recursos que ficam à disposição do Executivo como gastos discricionários. Em resumo, os recursos do Estado brasileiro deveriam ser vistos como fonte de provimento de bens públicos e não como um butim a ser disputado e dividido entre os interesses corporativos e os de seus representantes.

Eiiti Sato é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

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