Pedro Fernando Brêtas Bastos

Crônica de um velho Flamengo

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Estamos em festa, não importa o lugar do mundo onde estejamos. Nossa paixão transcende fronteiras físicas e políticas. Nós, flamengos, vivemos na Nação Rubro-Negra. Comemoramos a conquista de mais um campeonato carioca, desta vez contra o nosso mais antigo rival, o Fluminense.

Não sei quem um dia disse que “os brasileiros nascem flamengos; depois é que alguns degeneram”. Concordo. Mas acontece que, embora tendo nascido Flamengo, só o descobri numa noite há cinquenta e quatro anos. A data é fácil de saber: foi a noite de 4 de abril de 1956, data do segundo tricampeonato do Flamengo, que então completara seus sessenta anos, em novembro. Era uma melhor-de-três com o América, o clube mais simpático do Rio de Janeiro. O mais querido contra o mais simpático. A primeira partida, o Flamengo vencera por um mísero 1 a 0. A segunda fora um massacre americano: 5 a 1. Meu pai, americano doente, estava duplamente feliz, o América vencera e seu filho único fazia primeira comunhão.

Não assisti à partida final. “’Vi” o jogo pelo rádio. O América era o favorito. Entrou em campo com banca de campeão. O Flamengo, de calções negros, pisava no gramado com humildade e de luto (pelo recém falecido Presidente do Clube, Gilberto Cardoso). O juiz da peleja era o fero Mário Vianna — “com dois enes, falou, está falado”. Na tribuna de honra do Maracanã estava, o Presidente Juscelino Kubitschek’.

O América tinha um goleiro meio “presepeiro”, meio exibicionista, o Pompeia, que gostava de fazer defesas e “pontes” espetaculares para a torcida americana e para a galera em geral. E, naquele jogo, para desespero e sofrimento dos torcedores rubro-negros, estava com pinta de que ia pegar tudo. No entanto, era noite de Dida. O alagoano endiabrado deu o passe para o primeiro gol do Flamengo. E fez o segundo, o terceiro e o quarto — este último quase ao apagar das luzes, aos 44 minutos do segundo tempo. Conta o jornalista Mário Filho, em seu antológico “Histórias do Flamengo”, que o Presidente Juscelino deu um pulo e aplaudiu de pé. A torcida invadiu o gramado e comemorou o tri. Eu, em casa, me descobria flamengo desde e para sempre, sem jamais degenerar.

O time do Flamengo de 1956.

Afinal, ensina o tricolor (Ou seria rubro-negro? Mistério.) Mário Filho, dono do Jornal dos Sports e pai da crônica desportiva moderna, é mais difícil deixar de amar um clube de futebol do que uma mulher (os vira-casacas são uma espécie raríssima). No fundo, Mário Filho tinha também o coração rubro-negro, como o irmão, o maior dos tricolores, o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Ambos conhecedores, aliás, das origens do Clube, que nada teve a ver com o Fluminense, em seu nascimento.

Pois o Flamengo não nasceu como clube de futebol. Os rapazes que o fundaram, a 17 de novembro de 1895, eram remadores. Acertaram que o Clube de Regatas do Flamengo deveria comemorar seus aniversários no dia 15, para coincidir com a data da recém-proclamada República. Este fato desfaz um velho mito, repetido até por flamengos (perdão, não gosto muito do termo flamenguista — o “ista” me soa mal, como pejorativo) menos avisados, de que o Flamengo teria sido “filho” do Fluminense.

Em 1911, nos tempos do amadorismo, quando se jogava o football — ainda um esporte meio inglês — por amor à bola e à camisa, um grupo de jogadores tricolores, rapazes de boas famílias, se desentendeu lá com o pessoal das Laranjeiras e decidiu se juntar à turma do remo do Flamengo, para criar o departamento de esportes terrestres de um clube, até então, exclusivamente dedicado a regatas.

Por ironia, e a bem da verdade, devo relembrar que o primeiro Fla-Flu, em 1912, foi vencido pelo timinho do Fluminense: 3 a 2. Digo “por ironia”, porque a História registra que os jogadores que o Flamengo acolheu eram os melhores. E falo em “timinho” sem maior maldade ou desrespeito ao pseudo papai, até porque se gabam os tricolores de que muitas das grandes conquistas do Fluminense foram obra de equipes sem craques de renome (a galera pó-de-arroz nunca confundiu “timinho” com “timeco”.).

Sempre resisto a apresentar uma lista dos craques que formariam o melhor time do Flamengo de todos os tempos. Como sempre acontece com essas listas — afinal, cada torcedor tem a sua —, é inevitável que fiquem nomes de fora. De minha parte, gostaria de citar muitos heróis rubro-negros, que marcaram a História do Mais Querido. Mas os mais velhos se lembrarão de muitos outros: um Rubens (o Doutor Rúbis), meia armador clássico, que fez a torcida matar as saudades do antológico Zizinho; também ouvi falar em Fausto, a Maravilha Negra, Leônidas da Silva. Mas vi jogar Zico e Júnior.

Uma nota final, é bom recordar, especialmente aos de fraca memória, que foi no Flamengo onde Garrincha, o maior ídolo do Botafogo de todos os tempo, encontrou o seu último grande clube, porto de abrigo derradeiro, antes do naufrágio no alcoolismo irreversível, na decadência financeira e no abandono. Com generosidade, mas com muita esperança, o Mais Querido, que tanto sofrera com as diabruras das pernas tortas do Mané, tentou recuperar para o futebol brasileiro aquele que fora, como ele próprio — Flamengo — e sempre será, a Alegria do Povo.

Pedro Fernando Brêtas Bastos é diplomata e rubro-negro doente.

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