Guilherme Carvalho

Coronavírus não é excludente de responsabilidade do Estado

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Logo após iniciada a fase de confinamento populacional no Brasil, sobretudo nas grandes cidades, em menos de uma semana ondas de saques e arrombamentos a estabelecimentos comerciais tomaram assento. Para nosso desespero, tudo indica que, nada obstante a política econômica lançada pelo Governo Federal, que injeta uma significativa quantidade de recursos na economia, a insegurança pública prevalecerá.

Poderíamos até cogitar de uma habitual situação, corriqueira para um país subdesenvolvido como o Brasil, extremamente carente de recursos públicos na área de segurança pública, com quadro policial desequipado e, muitas vezes, despreparado. Ocorre que, no caminho, há um ingrediente microscópico, que tem revelado uma mudança comportamental jamais experimentada no mundo e, com mais razão, no território nacional, quase indene de catástrofes naturais ou mesmo de guerras tópicas e avassaladoras, como é exemplo a Segunda Guerra Mundial, que devastou significativa parte do continente europeu.

E já que estamos diante de uma expressiva desordem, desponta, como nunca, problemas – e consequentes equacionamentos – jurídicos a serem deliberados, dentre os quais se destacam os limites sobre a responsabilização civil do Estado.

Por questão de espaço e para não tornar cansativa a leitura, este pequeno ensaio se destina, exclusivamente, a abordar os prejuízos sofridos pelas empresas em decorrência dos saques ocorridos durante o período de quarentena. “Trocando em miúdos”, o proprietário de um estabelecimento comercial, fechado por expressa ordem do Poder Público, que venha a ser danificado, deve ou não ser indenizado? Em suma: a atual situação constitui uma excludente de responsabilização estatal?

Para melhor entendimento da matéria, o Brasil adota, expressamente, a teoria do risco administrativo, estabelecida no art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Há, contudo, uma discussão doutrinária – e até jurisprudencial – sobre a responsabilidade civil do Estado por omissão, o que é justamente o caso de que tratamos (inexistente segurança pública).

Importa destacar que, segundo corrente majoritária, doutrinária e jurisprudencial, o Estado, mesmo quando omisso, responde pelos danos que causar, ainda que se reconheça a necessidade de comprovar a negligência na ação estatal. Cuida-se, todavia, para que não se crie para o ente estatal a obrigatoriedade de ser responsabilizado por todo e qualquer ato (ou omissão) que venha a causar danos a terceiros, sob pena de se tornar um segurador universal, fato este que acarretaria a completa ruptura do orçamento público.

Em face disso, o tema da responsabilização civil do Estado não é totalmente jurídico, uma vez que assinala, também, um conteúdo de ordem econômica, no qual se faz necessária a máxima atenção quanto à extensão da responsabilização.

Justamente por estas razões, existem causas que eliminam a responsabilidade do Estado quanto ao dever de indenizar: caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou culpa concorrente (neste último caso, embora haja o nexo causal apto à atração da responsabilização, o valor da indenização devida à vítima é mitigado).

Pondo a polêmica em ordem prática, desde já se indaga: em tempos de confinamento (ou lock down – nomenclatura estrangeira), em que o Estado proíbe a abertura de determinados negócios, os danos causados ao particular diante da omissão estatal, sobretudo quando ausente o policiamento esperado, devem ser indenizados ou se trata de uma excludente de responsabilização estatal?

Bem, a resposta até parece ser de fácil solução, mas não. Veja-se que, de antemão, embora se antecipe a conclusão deste escrito, é dever do Judiciário não implodir o sistema constitucional de reparação de danos, uma vez que existem limitações de ordem material e financeira que não permitem uma ampliação desmesurada do rol de responsabilização do Estado; lado outro, o particular, lesado, tem o direito de ser indenizado (incidência da originária norma constitucional – art. 37, § 6º, CF/88).

Isso porque o Estado, ao tempo em que proíbe, ainda que temporariamente, o exercício de uma atividade econômica, retirando-lhe a renda, deve garantir a manutenção desta mesma atividade quando ultrapassados os motivos que ensejaram a restrição imposta. Veja-se, por exemplo, que, no plano federal, o Governo lançou política pública de suporte à manutenção das empresas (financiamentos com juros subsidiados e dilatação de prazos de pagamento mais longos; postergação quanto ao pagamento de tributos federais, dentre outros).

Ocorre que não faz o menor sentido haver uma política pública federal, bem traçada e planejada, que dê fôlego e suporte às empresas e, no plano estadual e municipal, despontem surpresas irreparáveis, dentre as quais a mais emblemática é a questão atinente à segurança pública. Dito de outro modo, a despeito do reforço no plano federal, nenhuma empresa sobreviverá se estiver submetida a constantes ondas de saques, pilhagens, arrombamentos e afins, que decorrem, claramente, da ausência de segurança pública, a qual, pela ordem constitucional estabelecida, é dever dos Estados (art. 144, §§ 6º e 7º, da CF/88).

Não é suficiente promover uma política pública federal, com subsídios variados, a uma empresa que tenha sido vítima de um completo saque. O montante da assistência, já escasso, não seria suficiente ao restabelecimento das atividades normais da empresa, quanto mais de um empreendimento que carece de total reconstrução.

Digno de nota que, ao tempo que o Estado (no plano federal) deve promover a reestruturação das empresas (e demais negócios), igualmente deve garantir a máxima segurança (no plano estadual), pois, do contrário, poderá ser responsabilizado por possíveis ações de reparação de perdas e danos, decorrentes da negligência estatal quanto ao esperado policiamento garantidor de um mínimo de segurança pública.

É que não se pode admitir que a omissão estatal quanto ao dever de zelar pela segurança em geral (pessoas e estabelecimentos) seja passível de alguma sobressalente excludente. Quer-se com isso dizer que, independentemente da caótica e inesperada pandemia causada pelo COVID-19, ainda assim remanescem estabelecidos os alicerces fundamentais para a responsabilização civil do Estado.

Parafraseando Michael Oakeshott (A política da fé e a política do ceticismo. 1. ed. São Paulo: É Realizações, 2018), a ideia fundamental de segurança está em “salvação”, “proteção”, sendo apenas em seu sentido alargado que esta se converte em “garantia de certo nível de ‘bem-estar’, enquanto governar é a atividade de prover tal garantia”. Deve-se ter cuidado quando “os significados mínimos de ‘segurança’ começam a se converter em máximos”, principalmente em situações nas quais sequer se assegura o mínimo de segurança pública a pessoas e seus bens.

Conciliar tais interesses será tarefa árdua para a jurisprudência, que terá o papel de, com maior responsabilidade que outrora, definir as balizas mínimas para o dever de indenização do Estado em face da omissão quanto à segurança pública, destacando-se, desde já, que a pandemia do Coronavírus jamais pode ser vista como uma total excludente de responsabilização do Estado.

“Quando tudo passar”, para que a vida continue, pode ser necessário que o significado “mínimo” de segurança seja expandido. Mas hoje, em tempos de pandemia, a garantia da segurança como “proteção” é seguramente menos dispendiosa do que a responsabilização de amanhã!

Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Foi Procurador concursado do Estado do Amapá. Bacharel em Administração.  Advogado e Sócio do Escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. guilherme@guilhermecarvalho.adv.br 

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