Katia Reis

Corações azuis: em defesa do SUS

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Somos hoje um país com mais de 211 milhões de brasileiros, e todos nós, sem exceção, temos o direito garantido por lei de sermos atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Esse direito está garantido pela Constituição de 88, a nossa “Constituição Cidadã”, que representou um marco, um divisor de águas na história da nossa democracia. Ela é referência não só na transição entre o regime militar que vigorara até então e a instituição do estado democrático de direito, mas representa também uma grande conquista de direitos trabalhistas e sociais duramente alcançados. A criação do SUS instaurou uma nova era de um sistema único de saúde, universal e gratuito. Ele é um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, sendo o único a garantir uma cobertura totalmente gratuita e irrestrita para toda a população.

A criação do SUS foi fruto de um sonho coletivo, longamente almejado por profissionais das mais diferentes áreas: sanitaristas, sociólogos, economistas, antropólogos, entre muitos outros. Antes da sua instituição, e poucos se lembram disso, só tinham direito ao atendimento em hospitais públicos os trabalhadores registrados, portadores da carteirinha do Instituto Nacional de Assistência Medica e Previdência Social (INAMPS). Aos pobres – chamados de indigentes, palavra terrível que nos remete a descaso, indiferença e esmola – restava o atendimento nas Santas Casas de Misericórdia, Hospitais Beneficentes, e alguns abrigos que dependiam da bondade alheia.

A promulgação da Constituição de 88 assegurou ao Brasil décadas de estabilidade institucional. Mesmo com graves crises que poderiam ter levado a uma ruptura institucional, como por exemplo, o impeachment do primeiro Presidente eleito após a ditadura militar, sob acusação de corrupção, foi mantida a estabilidade institucional do País.

A esse episódio se seguiram muitos outros como o escândalo envolvendo a elaboração do orçamento, a violação de sigilo do painel eletrônico de votação e o episódio que ficou conhecido como mensalão. Apesar da gravidade de todas essas crises, o respeito à legalidade constitucional foi mantido. Recentemente, temos literalmente assistido ao vivo e a cores, manifestações de pequenos grupos que pedem o fechamento do Congresso e da Suprema Corte do país. Tudo isso convoca reflexões sobre o paradoxo das nossas reações: ao mesmo tempo em que isso indica o quanto amadurecemos institucionalmente, não reagindo intempestivamente a essas provocações, faz-se necessário questionar o silêncio gritante ante as inúmeras tentativas de cortes e extinções de conquistas e direitos arduamente batalhados e consolidados na nossa Constituição.

Por conta da pandemia manifestações na rua não são permitidas, e é louvável a resposta que o povo brasileiro tem dado às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) de mantermos o isolamento social protegendo as pessoas mais vulneráveis, principalmente nossos idosos. É preciso respeitar a dor dos milhares de famílias que perderam seus entes queridos para essa terrível pandemia.

Vivemos diariamente as contradições inevitáveis na procura do equilíbrio entre o mercado e a política, entre o privado e o público, entre os interesses individuais e o bem coletivo. Infelizmente, quando o SUS foi criado não ficou claramente estabelecido qual seria sua fonte de sustentação, permanecendo como um sistema cronicamente subfinanciado. Isso se reflete nesses tempos tenebrosos de pandemia como, por exemplo, na necessidade de criação de UTIs, na aquisição de respiradores, na produção de medicações e vacinas, na contratação e treinamento de profissionais para a saúde pública e por aí vai. Tudo isso já deveria ter ficado bem determinado quando da sua criação. Para piorar nossa situação, diversos estudos mostram que o Brasil está entre os países que menos investem per capita com saúde.

Tomamos por garantido nosso direito ao SUS, um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, que abrange desde atendimentos simples em centros de saúde, até o transplante de órgãos. Vale ressaltar que no Brasil quase 100% dos transplantes são realizados apenas pelo SUS. O SUS-tento da saúde do Brasil está nas mãos do SUS e, por conseguinte, em nossas mãos.

Temos também sob a batuta do SUS um programa que coloca um largo sorriso na nossa cara. É o Programa Sorridente, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como o maior programa de saúde bucal público do mundo. Esse programa foi criado em 2004 e faz parte da Politica Nacional de Saúde Bucal. Suas ações são implementadas pelo SUS garantindo a todo brasileiro tratamento dentário gratuito. Atualmente temos centenas de Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) e Laboratórios de Próteses Dentárias públicos espalhados por todo o Brasil. O sucesso desse programa mudou a face do Brasil:  passamos de Brasil país dos banguelas para Brasil Sorridente!

Vivemos tempos difíceis com essa pandemia devastadora ceifando vidas diariamente. Precisamos mais do que nunca unir nossas vozes na defesa do SUS, na defesa dos nossos valorosos institutos de pesquisa e ciência, como a Fundação Oswaldo Cruz, o Butantã, Instituto Adolfo Lutz, responsáveis por salvar vidas, como com a descoberta de novos tratamentos e evolução dos serviços médicos, na produção de vacinas e de kit para testagens de varias doenças. Precisamos urgentemente investir em pesquisa, ciência, educação, mas infelizmente, o que temos visto, estarrecidos e indignados, são cortes inexplicáveis no orçamento de todos esses setores bem como as tentativas de desmonte de nossas universidades e hospitais públicos.

Muitos recursos têm sido liberados, originalmente, para o combate à pandemia. Infelizmente, o controle fiscal sobre esses recursos é ineficiente e insuficiente para combater a corrupção e os desvios do dinheiro publico. Somente com a participação ativa da sociedade é que poderemos exigir como melhor aplicar os recursos públicos para a área de saúde. Podemos contribuir participando de reuniões (mesmo que virtuais, com as atuais recomendações de isolamento físico) de associações de bairros, de sindicatos, de conselhos locais e de associações estaduais e nacionais de saúde. Manifestos nas redes sociais, pressionar os deputados, senadores, prefeitos, governadores para investir esses recursos que foram liberados tão rápida e generosamente para que cheguem aos locais de destino.

Agora, mais do que nunca, precisamos lutar pela manutenção e fortalecimento do SUS. Para que ele seja mais e mais inclusivo, socialmente justo e igualitário. O SUS é um dos nossos maiores bens e precisamos que ele permaneça forte e bem nutrido de recursos, assegurando a todos o direito à saúde ampla, universal, gratuita e irrestrita.

A saúde é direito de todos e dever do Estado. Mas, como bem o disse Milton Nascimento, “se muito vale o já feito, mais vale o que será. E é conhecendo o que fomos que nós iremos crescer. E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir”.

Juntos somos mais fortes! Viva o SUS!

Dra. Katia Reis é pediatra, psicanalista de bebês e seus pais, membro da Formação Permanente em Psicanálise do Instituto Langage, membro da La Cause des Bebès-Brasil, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria, pediatra Intensivista do Hospital Materno Infantil de Brasília, médica “Dotora” de Caminhadas do Projeto Re(Vi)vendo Êxodos e mãe de 3 meninas.

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