André Lopes

Conviver em democracia

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Conviver em democracia é uma opção jurídico-política. Poderíamos afirmar com boa dose de segurança que a melhor delas. Nela, a liberdade se ambienta como filha na casa da mãe. Compreender liberdades fora da ideia de democracia não se afigura raciocínio viável. Naturalmente, é de se aceitar que a democracia apresente as vantagens das liberdades asseguradas. Contudo, com sua feição processual, não é forma de governo de fácil apreensão e prática. Precisa ser constantemente vivida em aperfeiçoamento. Churchill afirmara que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as demais formas antes testadas. É de se crer que o estadista inglês quis formular com essa arquitetura vocabular que a democracia apresenta suas imperfeições reforçando que outras escolhas pretéritas foram ruins e que futuras podem ser piores.

A história não parece negar a célebre colocação. De fato, as experiências acumuladas pelos povos no tempo e no espaço não oferecem margens para discordância, restando, no entanto, o esforço de todos para o aprimoramento o modelo gerencial que indica a vontade popular como titular e a um só tempo destinatária do poder.

Pois bem, no cenário da luta, decidimos constitucionalmente pela democracia, porque desejávamos sentir o gosto agradável e doce das liberdades, ser ator e protagonista de uma história estatal.

Sem apego a conceitos jurídicos, desnecessário à reflexão proposta, é de se afirmar que a questão principal, merecedora de análise e crítica, diz respeito ao nosso coeficiente democrático atual, vale indagar se estamos nos filiando ao propósito idealizado e insculpido na Constituição Republicana de 1988 ou se dele nos distanciamos quando prestigiamos, numa irracionalidade típica do sentimentalismo, institutos outros que tendem a solapar e negar a mais densa conquista em nossa política.

Quando faltamos na participação popular efetiva, quando nos abraçamos irracionalmente nas ideias impostas pela agremiação partidária, quando nos filiamos a ideologias que não compartilham com ideais de isonomia ou mesmo quando se reconhece o bravatear com palavras de ordem reclamando o retorno de ditaduras, estamos afirmando nossa incompreensão sobre a proposta democrática. Nos revelamos deficitários na atividade necessária em identificar, ao menos em teoria ou em história nossa e dos outros povos, as características dos modelos invocados, das ideologias desalinhadas, e não nos identificamos como peças necessárias na condução do interesse público. Isso é um problema que merece atenção.

É certo que ante a jovialidade da Constituição Federal, possivelmente não tenha sido ainda consolidada a conclusão sobre as consequências das decisões nela incorporadas, as vantagens de se ter um pródigo catálogo de direitos fundamentais e um amplo espaço para participação popular. Faz-se necessário esclarecer que o fenômeno democrático é um processo de amadurecimento constante e essa construção só pode ser realizada por muitas mãos. O povo é convidado a esse trabalho.

É preciso advertir o leitor, contudo, de que a penetração do conteúdo da democracia na percepção popular não acontece de modo célere, sendo, não raras vezes, até motivo de desconfiança e ceticismo quando não se reconhece sua manifestação diante a ausência ou ineficiência de políticas públicas que privam o povo da satisfação das suas básicas demandas. Presenciamos nisso a falha do regime numa clara violação do postulado da isonomia, uma emanação clara do ideal democrático.

 Num plexo de distorções, o modelo democrático, compreendido como utópico em materialização plena tende a não ser absorvido pelo tratamento na forma idealizada por quem dela mais precisa. Uma democracia comemorada em solenidade, descrita em normas principiológicas e negligenciada em concretização política padece de problema e merece ser corrigida.

A ausência do poder estatal em seu dever prestacional gera aprioristicamente o questionamento sobre a eficácia da escolha democrática. Por óbvio, não é de se esconder que a responsabilidade pelo atraso na absorção dos conceitos democráticos deriva por outra via pela baixa carga de educação essencial. A incompreensão da forma de governo por carência de formação em conhecimento conduz à inércia e apatia política e à aceitação de imposições ou favores numa perversa negligência aos direitos conquistados. Um movimento odioso em que atores e vítimas do sistema se confundem. Quem deveria ser partícipe e destinatário das ações governamentais acaba não sendo nem uma coisa, sem outra.

Dentro desse espectro colocado de modo ligeiro e simples, pode-se afirmar que a democracia se alimenta de um regime de proatividade em que o povo, em conjunto, ou por meio de cada um que o compõe,  exige e se doa no ambiente da liberdade, participando da politica a partir do conhecimento adquirido sobre suas características, mas sobretudo, fortalecendo essa forma de governo que, seguramente, tem muito para oferecer.

Trata-se de um processo alimentado pela relação de reciprocidade em que o destinatário das benesses democráticas é protagonista da ação prática, partícipe da política no ato de cobrar, no comportamento do opinar, nunca abrindo mão da necessidade de se entender a razão de seu propósito.

A deficiente compreensão ou inexistente leitura do texto constitucional identifica a baixa sintonia entre o povo e as políticas públicas governamentais, revela as dificuldades de conexões entre os mandatários do poder e o destinatário dele reduzindo a democracia a uma mera carga semântica, exatamente porque, sua densidade normativa não mantém correspondência com a atividade necessária a sua concretização no mundo dos fatos. Isso precisa ser pensado e deve ser corrigido.

Então, é correto dizer que investir numa modelagem educacional que antes de tomar a instrução como processo de acúmulo de conteúdos, seja pensado como uma oportunidade de tradução da percepção do civismo e formação política imbuindo cada um de responsabilidades perante o Estado e diante da sociedade, exigindo que todos tomem, cada qual sua cota de ação e aja para aperfeiçoar a melhor das formas de governo.

Não faz bem a um povo suscitar alternativas à democracia porque nela, e apenas nela, é possível se vivenciar as experiencias das liberdades públicas. Não é de se esperar conhecer a liberdade de locomoção, o direito de reunião, pensar a propriedade, o livre expressar sem que o guarda-chuva dessas permissões constitucionais seja a democracia. Porque nela somos livres, e apenas sendo livres, vivemos liberdades. Reconhecer essa possibilidade em outras formas de governo seria um sofisma ou então insuficiência de conhecimento.

André Lopes é procurador federal.

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