Alfredo Bertini

Brasil surreal: as más lições dos pandemônios em plena pandemia

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Jeitinhos benevolentes e criatividades excêntricas à parte, a nossa pátria amada Brasil, entre tantos exemplos de riquezas e valores, não poupa esforços para fazer o surreal. Nem em tempos inéditos de uma calamidade previsível na saúde pública, assimilada de fora na forma de uma pandemia, nosso País se revela como um campo fértil para todas as formas de pandemônios. O Brasil parece uma espécie de vampiro, que escancara suas próprias artérias carótidas, suga o sangue e ainda introduz uma virulência que idiotiza o cérebro. Não dá para entender de outra forma. São dois vírus vigentes, altamente contaminantes:
a) o conhecido vírus do COVID 19, que explica a pandemia; e
b) o cansativo e repetitivo vírus POLIT 20, que explica os pandemônios de generalizadas politizações.
De um simples espirro à eficácia de um remédio, tudo é tratado pelo sentimento político, de quem põe seus dogmas acima de qualquer suspeita.

Faço aqui alguns breves comentários sobre esses temas, à luz de uma modesta observação de quem teve, na experiência acadêmica, a preocupação com os valores da Economia, da Educação, da Cultura, da Ciência e da Pesquisa. Ou seja, tudo que pode dar consistência à interpretação dos fatos que envolvem essa pandemia.

1. As Incompreensões Sobre o Significado de uma Pandemia

Entre os pandemônios exacerbados por essa calamidade pública está um frágil entendimento do que seja uma pandemia. Nesse campo cinzento de uma doença que se propaga por meio de um tal “novo coronavírus ” de pouco conhecimento, está o DNA da virulência do POLIT 20.

Conspiracionismos histéricos à parte, o que a Ciência e a Pesquisa revelam é a aposta no isolamento social, como forma de se conter a velocidade do contágio. Em cima disso, ter-se condições de favorecer os sistemas de saúde, no atendimento adequado às demandas dos enfermos. É justamente por esses riscos de contaminação e eficácia nos atendimentos em todos os recantos do planeta, que uma entidade como a OMS define tal fenômeno como uma pandemia.

O POLIT 20, em terras nacionais, reage de outra forma – a combativa. Embasado por dogmas que negam a Ciência, desmerece a gravidade da doença e até debocha da força do vírus que interessa tratar: o COVID 19.

O problema sanitário provocado pelo coronavírus, infelizmente, é extremanente grave. E aqui reforço a percepção geral dos especialistas, de que o problema não decorre apenas da percepção aparente de uma baixa letalidade que, por si só, já representa algo cruel. É pela falência inevitável dos sistemas de saúde público e privado, na exponencialidade da curva de contágio. E essa pandemia não escolhe países, partidos políticos, ideologias e riquezas. As consequências do ataque desse vírus é comum a todos.

De fato, o cerne da questão é não ter profissionais suficientes, EPIs, respiradores, leitos e tudo mais que garanta o direito inalienável do ser humano: ser atendido e curado. Sem falar, do outro lado da mesma moeda, como é o caso do profundo respeito à ética, que é algo inalienável entre os profissionais de saúde, justo pelos respectivos juramentos em atender decentemente seus pacientes. E do jeito que a doença se propaga, o pior dos mundos para eles seria exercer “a escolha de Sofia” e ainda saber que os destinos de muitos corpos são valas comuns. São cenas horripilantes já vistas na Europa e agora, mais recentemente, em Nova York, nos EUA, e em Guayaquil, no Equador.

Nesse primeiro tema sobre o que é a pandemia, dois pontos finais. Não me parece crível, em pleno Século XXI, cenas do século passado ou de filmes. E saber que isso poderá ocorrer no nosso País por negligência geral e até por um exercício de populismo político, é algo surreal. Por outro lado, é o frequente esforço pela subestimação da pandemia, quando até se faz comparativos a interpretações de estatísticas absolutamente sofríveis. Tudo a favor de um pandemônio que joga a favor do outro vírus- o POLIT 20. Tema de próximo tópico.

2) A Inoportuna Politização em Torno de um Remédio

Eis outra particularidade do “surrealismo” brasileiro, em pleno início da fase pior da pandemia. O vírus POLIT 20 trouxe para dentro de uma discussão natural, entre médicos e seus protocolos de tratamento, a extensão de palanques eleitorais das últimas duas eleições nacionais. Essa cartase maniqueísta, que ainda submete o País ao ridículo de uma discussão desse nível, revela mais um traço do surreal.

Um fato grotesco é essa politização absurda em torno do medicamento cloroquina. Entendo que seu valor está em protocolos individuais, nos quais as respostas são variáveis, conforme os organismos dos pacientes. Isso sem falar nas contraindicações. É perfeitanente válida a prescrição de se tratar uma gripe com parecetamol. Mas, por exemplo, para alérgicos à droga, torna-se uma opção imprescritível. Em sintese: em questões de saúde pública, na visão coletiva, não há solução por prescrições baseadas em protocolos individuais. E, ainda mais, sem testes suficientes para aumentar o nível de segurança. Diante disso, não cabe outra solução: a vacina.

O que aqui expus foi uma questão técnica, que pode embutir divergências naturais entre profissionais de saúde. Trazer o embate político em torno de um medicamento e fazê-lo instrumento de salvação da pandemia, além do exagero é um ato populista.

3) O Falso Dilema Entre Tratar Doentes ou Desempregados

Já tive a oportunidade de externar o equívoco técnico, justo na iminência de uma política pública em ambientes de calamidade. Por maior que seja a escassez de recursos ou o rigor do pensamento econômico (se liberal ou não), a decisão por alocar recursos numa pandemia é a favor da preservação das vidas. A crise recessiva é inevitável e o desemprego representa uma infeliz consequência. É um dado inquestionável. Mas, na hora dos riscos econômicos que derivam do isolamento social, a falência nos sistemas de saúde fala mais alto. O “espírito” keynesiano pode ser assustador para o liberal noutras circunstâncias, mas na pandemia é como profanar o sagrado, ou seja, não fazer valer o gasto público pela preservação de vidas. Não dá para acreditar na frieza da finitude dos empregados, em troca do mantra da preocupação com a perda dos postos de trabalho. É óbvio que os mortos jamais voltarão ao mercado. Já os desempregados, certamente, terão à frente muitas chances de retornarem a ele. E curados, se forem bem assistidos.

4) O Poder do Fanatismo

Outro pandemônio promovido pelo vírus do POLIT 20 é constatar que a politização em torno da pandemia é mesmo a extensão de velhos palanques eleitorais, como já mencionei antes. Parece-me que no momento dessa crise ficou claro que os atores foram substituídos pelos extremos. A essência do absolutismo da verdade continua a mesma. Inverteu-se apenas o sinal da operação.

Aqui, endosso as palavras filosóficas de Karnal e confesso que também não me sinto à vontade como “pára-raios de fanáticos”, seja qual for sua espécie social-biológica. Parto do princípio que, acreditar numa ideia nunca deve ser um problema. De fato, o importante é saber que o ideário é multivetorial, plural por natureza, de sorte que o desafio deve estar na capacidade de entender respeitosamente cada linha de pensamento. O problema existente está em fazer o ofício das catequeses, convencimentos, sobretudo, pelo uso escancarado de caldos culturais manobráveis.

Para isso, farei também um breve exercicio metafórico. A ética do consumo da carne bovina e do chuchu pode ser interpretada aqui como o cerne de um embate contextualizado entre ideologias radicais. O vegano contesta um padrão ético no uso da carne como fonte alimentar. Uma ética baseada na morte, como se o chuchu fosse diferente da carne na forma de ciclo de vida. Interessante que ambos não expressam sua “insatisfação” por serem igualmente consumidos. Mas, vale lembrar que foram biologicamente dois seres vivos. Nesse impasse, as defesas antagônicas se evidenciam. E muitas vezes de forma histérica. Bem ao estilo paranoide dos fanáticos.

O desejado equilíbrio num debate, quando se tem evidente o discurso dos radicais, está em “retirar a vitamina” que dá “nutrição” à verve desses seres dogmatizados. Cabem aos equlibrados que não permitam que a banda toque, senão essa turma dança – e bem – feito papagaio no piso quente.

Na verdade, não há a menor chance de diálogo com quem exercita, destila e vomita dogmas. O bom debate só poderá existir e frutificar quando se leva em conta a consciência das limitações. Daí, pode-extrair que a sabedoria humana está em saber relativizar a verdade. Afinal, niguém pode ser capaz de exercer o poder de um achismo inconsequente: de se sentir muitas vezes (ou sempre) o “dono da verdade”. O próprio ensinamento bíblico de João sobre essa verdade condiciona o ser humano aos seus limites. Ao afirmar que ao conhecê-la o homem é capaz de se libertar, vale enaltecer que a maior (e melhor) libertação é aquela que sabe por os dogmas no seu plano secundário. A vida é capaz de ensinar a por limites e, por conseguinte, saber encarar os temores. E esse contexto nos deixa menores diante da superioridade divina, que se assim se manifesta em distintas religiões.

Em suma: a pior matemática dos mundos provém de um frágil exercício cultural. Ela consiste em ver a soma dos coeficientes do recurso intelectual limitado com a leitura monobibliográfica. Disso se conclui ser mesmo temerária qualquer resultante que decorre da ignorância com a leitura de um só livro. E se houver nesse tempero uma pitada de poder, tem-se aí mais uma receita certa para a extravagância do populismo.

Incrível, surreal, mas em plena pandemia, quando o espírito de união, sob lideranças, mostra-se como algo vital, o vírus do POLIT 20 promove uma politização na sua forma mais perigosa: a da recorrência insistente pelo fanatismo dogmático.

5) Guerra Digital: A Virulência no Tratamento das Informações

Também tem sido um exercício surreal o pandemônio que deriva da guerra politizada, que tem sido vista na mídia, sobretudo nas redes sociais. Portanto, tem-se aqui um elemento crítico do vírus POLIT 20, que traz uma forma a mais de pandemônio em plena pandemia.

O questionamento desse papel das redes sociais até que extrapola essa calamidade. Infelizmente, tem sido um mal presente nos últimos anos. É lamentável poder vê-lo tão disseminado, nesse ambiente tão duro de uma crise na saúde pública.

A questão que não quer calar é: por que se acredita tanto no que se propaga nas redes sociais?

Bem, o curioso é que o entusiasmo por se informar, através dos instrumentos de comunicação facilitados pela internet, foi em parte uma reação ao que se procurou rotular de exaustão na parcialidade das mídias convencionais. Ou seja, de uma hora para outra, pulverizou-se o número de mídias individuais, que imbuídas muitas vezes pelo interesse informativo (jornalístico?), terminaram por ocupar um espaço entre os “descrentes” dos meios de comunicação mais tradicionais.

No entanto, percebe-se que a reação de transição dessas mídias, a título de substituição do parcial pelo imparcial foi-se mostrando improvável. Ou seja, os variados conteúdos das redes sociais são tão direcionados aos seus interesses institucionais, comerciais ou ideológicos, quanto àquela que os “modernos” chamam de “velha” mídia convencional.

Na verdade, o que vale mesmo no exercício do consumo, em forma de audiência, é aquilo que convém a quem demanda pela informação. A não ser a comodidade prática de se ter nas redes sociais uma maior soberania para exercício do consumo (a audiência se estabelece do jeito e na forma que o interessado quer, numa espécie de “video on demand”), no mais não há muita diferença entre as mídias. Assiste-se ao que convém e que se faça bem aos olhos e aos ouvidos. E isso faz a felicidade dos “narcisos”, que confudem as reles “oleosidades nas suas frontes” como se fossem “mentes brilhantes”.

Enfim, nessa massificação dos conteúdos nas redes sociais, em largo espectro explicada pela falta de preparação acadêmica formal, o que se percebe são arremedos de profissionais que buscam pelas informações, jornalísticas ou não. No geral, falam muito mal de quem exercita a ideia contraria e quase sempre destilam mais opiniões justo sobre o que não conseguem entender. Esse casamento entre o despreparo no conteúdo e na forma de disponibilizar a informação frente a um público doutrinado, fanatizado, é o pior dos mundos. O fiasco da comunicação, amparada nos chamados “fakes” e outras formas terríveis de expor opiniões, representa um elemento viral duplanente perigoso: pela propagação rápida e pela mediocridade do conteúdo.

Mais uma vez, nessa cartase maniqueísta que se transformou o mundo, exercido por fanatismos e excentricidades, o debate saudável e democrático parece mais um confronto dessas abomináveis torcidas organizadas que ainda resistem no futebol. Não importam a essência e a consistência de distintos argumentos, verdadeiros elementos que devem pautar a informação depurada ou o bom jornalismo. O que prevalece mesmo é o alinhamento ideológico, na maioria das vezes pautado pelo estímulo ao confrontacionismo típico dos fanáticos.

6) A Visão do Pós Pandemia: Pactos e Estratégias

Por maior que ainda seja o desafio da pandemia, não se pode perder de vista o olhar para o futuro. Ou seja, o debate lúcido será buscar o entendimento de como o mundo irá se ajustar à nova realidade. A resistência socioeconômica que emergirá da pós-pandemia será inevitavelmente outra. Haverá, certamente, um extrato insólito de cultura, diferente da atual, com ambientes, hábitos e costumes que devem ser revistos.

A crise atual do estágio da pandemia em si já exige união, alguma forma de consenso, entre todos agentes sociais. O que assusta é que, se não houve até agora qualquer intensão de pactuar, de buscar unidade no início da crise, imagine-se depois. Nessa hora, é lamentável a postura de qualquer líder de Governo que opere em desalinho com o que estabelece os rigores da Ciência e da Pesquisa. Daí, é inevitavel saber se a observada manutenção de comportamentos dúbios, particularmente do Presidente da República, garantirá a postura de liderança que se deseja para pactuar e coordenar a transição para esse novo mundo.

Nesse sentido, destaco aqui um sinal importante do que pode ser o papel de líder. E vem de uma referência que i inicialmente contestava a gravidade da pandemia.
O exemplo a ser evidenciado é o do Primeiro Ministro Britânico Boris Johnson. Sua reação após sair da UTI, vítima que foi do COVID 19, foi algo que pode ter um significado histórico. E por isso mesmo representa uma luz nessa percepção do que virá do futuro, depois da pandemia passar.

Antes que se diga aqui o porquê, há dois aspectos do seu viés político que precisam ser recolocados. Um primeiro trata da sua tese política, conhecidamente contrária à presença de imigrantes no solo da realeza britânica. Um segundo, derivado da sua postura inicial recente sobre a própria propagação do vírus, reviu sua “aposta” na teoria absurda do “liberou geral”, pois acreditava na contaminação rápida e daí na imunidade, como a melhor terapia. Não só percebeu que não era uma “gripezinha”, para apostar naquele viés da imunidade e daí ter tempo para salvar sua Economia. Mais do que simplesmente se render ao problema econômico e concebê-lo como um DADO em tempos de pandemia, foi sentir na própria pele o sofrimento da doença: nele mesmo e no sentido coletivo.

E de onde vem esse componente histórico, a partir dessas posturas da maior autoridade governamental da Grã Bretanha? Simples. A dor da enfermidade e o risco de morte derrubaram as duas teses. Não só ele foi vítima daquilo que subestimou, como teve a sensibilidade de agradecer a quem lhe tratou. E, entre os “anjos” assistentes, o destino lhe pôs de frente dois imigrantes: uma neozelandesa e um português.

Conclusão: esse novo líder mundial já emitiu os sinais que o mundo precisará ser outro. O esforço é saber conduzir um pacto político-social que entenda os novos valores culturais e recupere a atividade econômica.

A vida ensina. A pandemia será uma lição nova para se encarar um outro mundo, de desafios gigantescos. E o que se extrai desse aprendizado de Boris é uma palavra pouco habitual, embora muito simples: HUMILDADE.

Resta saber agora se essa lição de Boris estaria também ao alcance do nosso Chefe de Governo. Diante do seu comportamento errático a dúvida está em saber se ele deseja fazer essa leitura.

O fato é que o Brasil da pós-pandemia não irá suportar outro pandemônio – o de não se ajustar à nova realidade.

Alfredo Bertini é economista, professor e pesquisador.

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