Dante Coelho de Lima

Antonio Houaiss e a arte do bem comer

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O amigo Carlos Ceglia postou nas redes sociais a bela foto do steak tartar que ele preparou. Fiquei com água na boca. Aí lembrei de uma história ótima. Um pouco longa, mas se vcs tiverem paciência pra ler…

Antônio Houaiss, filólogo (ou “fautor de dicionários”, como já se autodeclarou) e diplomata cassado e aposentado, era conhecido por ser um  renomado “cordon bleu”. Apesar de não ter propiamente o “physique du rôle“.

A ação se dá em Caracas, onde Houaiss fora participar de uma reunião de Ministros da Cultura das Américas.

O colega e querido amigo Ricardo Vianna de Carvalho, Ministro-Conselheiro da Embaixada, estava naquele momento, de Encarregado de Negócios, e ele e a mulher, Marina, convidaram Houaiss para jantar na então prestigiosa casa de carnes Lee Hamilton, hoje fechada.

Antonio Houaiss.

Instalaram-se na boa mesa reservada e puseram-se a compulsar o menu. Enquanto isso, serviram-se da cerveja local Polar bem gelada. E um ou outro tira-gosto, como o popular tequeño (um palito de queijo à milanesa frito). Ricardo e Marina rapidamente fizeram suas escolhas. Ao que consta, o corazón de lomito teria sido a pedida, já conhecida e apreciada de ambos. A Houaiss tomou-lhe mais tempo em minuciosa consulta. Por fim indicou que lhe apetecia um steak tartar, mas constatara, desolado, a ausência da iguaria no cardápio. Com jeito, perguntou se, ainda assim, será possível preparar-lhe o tartar.

Chamado e indagado a respeito, o garçon correu ao maître e comunicou-lhe o insólito pedido do freguês. O maître fez rápida visita à cozinha e voltou para pessoalmente informar que, con mucho gusto, o cozinheira prepararia o steak tartar, para grande alívio do Ricardo.

Quando tudo parecia bem assentado, eis que o nosso filólogo voltou à carga: agradeceu e perguntou se seria, então, possível que os ingredientes fossem trazidos à mesa e ele mesmo, Houaiss, se encarregaria de preparar o tartar?

Estupefação geral. O garçon viu-se, a essa altura, à beira de um ataque de nervos, mas o maître, sempre obsequioso, apressou-se em destramar o imbroglio (afinal esse era o seu mister), já agora percebido pelos circunstantes. Rodopiou nos calcanhares, correu de novo à cozinha e voltou dizendo que os ingredientes já estavam a caminho. E assim foi feito. Logo a mesinha de apoio ao lado estava repleta de combuquinas com os ingredientes: filé-mignon moído, alcaparra, cebola roxa,  pepino em conserva, salsinha, tudo bem picado, além de outros temperos de molho inglês, mostarda, tabasco, conhaque, ketchup e uma gema de ovo. Sal e pimenta a gosto.

Restaurante onde se deu o show houaissiano.

Antônio Houaiss entregou-se à empreitada, numa alquimia complexa e perfeita de sabores e cheiros.

Juntou gente. Além do primeiro garçon, nem bem refeito do espanto, outros vieram ter respeitosamente ao redor da mesa, junto com o maître, de olhar a um tempo atento e esgazeado, bem como um ou outro comensal, atraído desde logo pela frenética movimentação em torno daquela mesa. Ricardo e Marina acompanhavam tudo com certa aflição diante daquela experiência única.

Concluída a obra, Houaiss, galante, deu a Marina o privilégio da primeira prova da iguaria. Marina, boa gaúcha, apreciadora da carne bem assada no fogo de chão, rendeu-se e teceu loas ao tartar houaissiano. Ricardo também. Coube então ao criador avaliar sua criatura. Serviu-se. Duas ou três garfadas depois deu-se por satisfeito e decretou, triunfante:

– Está excelente; eu continuo muito bom nisso.

Faltou pouco para que prorrompessem aplausos.

Ricardo, surpreso, ainda perguntou se realmente ele só ia comer aquelas três parcas garfadas. Ao que Houaiss respondeu que sim e que o segredo do bem comer estava em sair da mesa com a sensação de que poderia comer mais.

Seja como for, é desnecessário dizer então, que o steak tartar passou a fazer parte essencial do cardápio do Lee Hamilton, até que o restaurante foi fechado em setembro de 2018.

Dante Coelho de Lima é diplomata.

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