Dante Coelho de Lima

Algo mais que aviões de carreira

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Devo dizer desde logo que, ao assumir a Embaixada em Belgrado, encontrei um ambiente extremamente acolhedor. Não só no seio da comunidade diplomática, onde de fato pude perceber, com todo respeito, alguns belos, extraordinários e plenipotenciários seios, como também entre as autoridades locais e a chamada sociedade – naquele momento – servo-montenegrina, onde também observei outros tantos e formosos.

Certamente isso se deve ao excelente trabalho realizado por meus antecessores. A par de uma longa história de relações cordiais, os sérvios têm sempre uma palavra generosa em relação à postura construtiva assumida pelo Brasil durante a guerra que desintegrou a Iugoslávia, mantendo nossa Embaixada aberta, cuidando dos negócios de Embaixadas europeias e, sobretudo, à nossa posição na questão do Kosovo.

Numa noite sem grandes eventos, Rujiza, a segunda da Embaixada, o filhote André e sua amiga sérvia Milica, resolvemos atender ao convite do colega Embaixador de Cuba para comparecer à inauguração de um bar de música chamado Havana, numa das transversais da mais conhecida rua de pedestres da cidade, a Kneza Mihailova.

Faço um parêntese para esclarecer que a Tereza não me acompanhava, pois estava no Rio em razão de uma pequena cirurgia.

Chegando lá, deparamos com um clima bem latino, com um DJ animando a festa com música dançante moderna. Ambiente florido com muitas rosas locais. Moças muito lindas. Quando cheguei com a Rujiza, André e Milica, nos arranjaram logo uma mesa bem localizada.  Upgrade para primeira classe. Ao nosso lado, só o Júlio Cesar Cancio, o Embaixador de Cuba. Atrás, outros colegas não tiveram a mesma sorte.

Modo avião

Muitos aviões. Parecia até um desses festivais aeronáuticos tipo Feira de Le Bourget, na França, ou Farnborough, na Inglaterra. E lá fiquei, com o encosto da poltrona em posição vertical, cinto atado e observando os sinais de não fumar, tendo guardado no bolso externo do blazer o oloroso charuto Cohiba que o colega cubano me ofereceu.

E fiquei observando aqueles aviões sérvios esvoaçando no meu espaço aéreo em baixa altitude, mas em alta tentação, malemolentes ao som da música.

Sobrevoos e pousos autorizados.

Perfeitos corpos alados, mais pesados que o ar – mas só um tiquinho. Na verdade, pareciam mais planadores de imensa leveza, descrevendo deliciosos traçados no ar. Dotados de sólidas fuselagens, robustas naceles, flaps e ailerons insinuantes e graciosas longarinas, essas aeronaves de carne e osso traziam, na parte traseira, empenagens de intocável aerodinâmica, que asseguravam sua estabilidade longitudinal e direcional.

Vez por outra, de asas abertas, empreendiam delicados movimentos de arfagem em arrojadas e sinuosas manobras, iludindo seus planos de voo originais, sem nunca, contudo, perder o horizonte artificial.

Já eu tinha dificuldade em manter meu horizonte.

Por causa disso, na torre de controle, Rujiza e André, inexpugnáveis sentinelas e guardiões, iam garantindo a segurança de voo, harmonizando rotas, altitudes e velocidades, despachando coordenadas e instruções precisas. Estavam afinal, meu filho e minha colaboradora, zelando pelas virtudes e deveres do pai e pela dignidade do cargo do Embaixador do Brasil.

Piloto automático desativado. Mais ginga e meneios, mais lenha na fogueira e empuxe nas turbinas, e as meninas caíram na salsa e no samba, numa vertiginosa queda em loop.

As caixas pretas nunca seriam encontradas.

Para prestigiar o estabelecimento, tomei dois mojitos e, por fim, atendi ao clamor dos deveres familiares e profissionais e pedi a conta, que me foi negada. Cortesia da casa. Rujiza, com quem eu estava de carona, pediu para ir embora e saímos meio de fininho.

Eu já tinha feito meu gesto. Pensei na minha querida Tereza no Rio com o queixo inchado da operação.

Em casa, no fim da noite, pedi um whiskinho e operei o teclado para contar esta história a vocês. E ao reler o que já havia na tela, fiquei pensando que parecia uma narrativa saída de livro do Ivan Sant’Anna (tipo “Caixa Preta”). Só que sem acidentes, vítimas ou perdas materiais. E sem falhas ou perdas humanas.

As meninas sérvias com certeza terão afinal cumprido a rota aprovada nos seus planos de voo e chegaram sãs e salvas nos seus destinos, pousando suavemente na cabeceira de suas camas.

Em tempo: lembrei que sou membro do grupo “Apaixonado por aviões”, do Facebook.

Dante Coelho de Lima é diplomata.

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