Sylvain Levy

A voz calada e a voz divulgada

acessibilidade:

No princípio não era o caos. Era sistematização, organização e separação de funcionalidades e de equipamentos. Era a era da uni-programação. Uma necessidade, uma programação, um “job”. Uma entrada e uma saída. Linguagem próxima de máquina, como assembler, codificação, entrada de dados diretamente na máquina ou por cartão e depois por fita e mais adiante por imensos panelões de discos. A saída era por papel impressos ou pelas mesmas vias da entrada.

Os CPD’s – Centro de Processamento de Dados eram locais inexpugnáveis. Assemelhavam-se a UTI’s de hospitais em tempos de pandemia. Imaculadamente limpos pois qualquer poeira poderia danificar os sensíveis equipamentos ou atrapalhar um trabalho. Só se entrava num CPD com cartão magnético ou senha digitada e placas na entrada proclamavam “somente pessoas autorizadas”. Não à toa eram conhecidos como castelos e seus ocupantes, analistas, programadores e operadores eram regiamente remunerados.

E essa era outra divisão muito bem marcada. Analista de sistema era analista que definia e desenhava sistemas, programador programava, operador operava máquinas e usuário solicitava serviços. Cada máquina era um estado independente que mal e mal se comunicava com o mundo exterior.

Quem solicitava uma informação ou pedia o desenvolvimento de um sistema ou organização de um trabalho para orientar o planejamento de uma atividade ou a decisão sobre uma ação tinha que esperar pacientemente que cada etapa do processo fosse cumprida, sem interferências.

A partir da década de 60 os circuitos eletrônicos e as válvulas são substituídos por transistores e dois grandes problemas começam a ser resolvidos: o gasto de energia e o superaquecimento. Dentre tantos, dois fatos marcaram tecnologicamente a década de 70: a multiprogramação – dois ou mais programas rodando simultaneamente na mesma CPU – e a interligação entre maquinas e sistemas, o que aumentou consideravelmente a capacidade operacional dos computadores.

Aí, a partir do final dos 70 e início dos anos 80, há menos de 40 anos portanto, o desenvolvimento científico e tecnológico trouxe transformações a galope. A miniaturização de circuitos e componentes foram reduzindo o tamanho dos computadores e novos sistemas operacionais aproximavam as pessoas das máquinas. O cérebro eletrônico se misturava com o cérebro humano. E dessa fusão nasceria a mais revolucionária confusão.

Um CPD que operava um computador de 256 K necessitava de cerca de 250 metros quadrados para funcionar, com sua CPU, unidades de fitas e discos, impressoras e toda a parafernália auxiliar. Um PC – Personal Computer, com 1 Mega de memória, com capacidade quatro vezes do outro computador, ocupava menos de um metro quadrado, ou seja o tampo de uma mesa média, com CPU e monitor. E o que tornava tudo mais interessante era a possibilidade do próprio usuário interagir com o computador.

Das interconexões à Internet, das bibliotecas aos aplicativos de busca, dos PC aos micros, dos IPAD aos telefones celulares, desses para onde?

Descobertas científicas, desenvolvimentos tecnológicos, aliados a desejos ocultos revelados, necessidades insuspeitas denunciadas, curiosidade natural do ser humano, ânsia de conhecimento e comportamento consumista, tudo isso tendo como suporte um espírito ao mesmo tempo aventureiro, narcísico e socialmente agregador, formaram e conformaram a sociedade conectada virtual e real que vivemos e construímos diuturnamente.

A acelerada conquista tecnológica não foi acompanhada pela sociedade no mesmo tempo de evolução. As novas tecnologias e metodologias de informação, comunicação e robótica ainda não estão completamente absorvidas pelos diversos estratos sociais e pelas diversas regiões do globo. A marca dessa época, muito mais que a diversidade, é a desigualdade. Seja de rendas, de educação, de oportunidades de acesso a bens e serviços, aí incluídos a computação e sua utilização.

O domínio da informação, o poder inerente a quem dispõe de dados e informações que existia no passado mantém-se no presente, mas com alterações importantes, pois o alcance de uma voz, antigamente restrita ao seu espaço físico multiplicou-se e hoje atinge a milhões e em alguns eventos, como Olimpíadas e Copas do Mundo de Futebol, a bilhões de pessoas.

Com as redes sociais e as modernas técnicas de marqueting e algoritimia é possível disparar um míssil comunicativo que acerta uma mosca – internauta – a milhares de parsecs de distância, ou milhares de pessoas a inexistentes centímetros virtuais de distância.

Isto coloca a postagem informativa pessoal no mesmo nível de uma notícia socialmente importante ou de uma informação ou noticia falsas, as Fake News. A base da informação postada não é mais a sua origem ou quem o faz, mas a finalidade de sua divulgação. E é aí que mora o perigo, pois compete a quem lê decifrar o interesse de quem escreve e divulga e isso nem sempre é fácil ou compreensível para a maioria. A manipulação ganhou um status de ciência e quanto mais complexa mais expressiva.

Não é incomum que a mesma pessoa que posta nas redes sociais suas realizações e participações em eventos e viagens, desnudando sua vida, reclame de notícia que não seja de seu agrado, publicada sobre ela mesma, deblaterando contra uma “invasão de privacidade”.

Os limites entre a manifestação de uma opinião, a divulgação de uma notícia falsa ou de um estudo sem comprovação técnica ou científica se tornam pouco nítidos se forem confundidos um com qualquer dos outros dois. Divulgar um fato inverídico é sinal de interesse de quem o faz, sem que isso possa se caracterizar como opinião. Porem, podem ser considerados como livre manifestação do pensamento a divulgação de uma manifestação e os motivos dela – como sinais inequívocos de que há concordância com o movimento, assim como ecoar um protesto é concordar com seu teor. Mas não deve ser possível se escudar na livre manifestação de ideias como forma de se irresponsabilizar por suas opiniões. Opinar deve ser considerado um ato tão completo como a ação.

Culpar alguém por manifestar suas ideias é muito diferente de responsabilizar alguém por opinar. A culpa deve ser assumida quando houver a intenção de ferir, de causar dolo à pessoas  ou à instituições, ou mesmo quando isso não ficar caracterizado mas o prejuízo ocorreu.

Luiz Carlos Azedo, em sua coluna no Correio Braziliense, escreveu que a “ampliação da esfera pública acontecida a partir do século XVIII, com as pessoas podendo conversar sem os filtros dos cerimoniais governistas, sobre a vida, a política e a sociedade em tabernas, bares, cafés, teatros, museus (a rua, no geral), criou oportunidades para o questionamento da cultura representativa do Estado”.

É essa mesma oportunidade, ampliada mais ainda com o acesso as redes sociais, ao computador e à Internet, de um modo geral, que vivemos hoje. Com a socialização do uso da Internet e a possibilidade da proliferação e consequente divulgação das opiniões a liberdade também se generalizou. No principio não era o caos. Agora é. Aquela democratização do pensamento no século XVIII desembocou na Revolução Francesa e na Independência dos Estados Unidos. E essa agora? É bom lembrar que depende de nós. De cada um de nós.

Sylvain Levy é médico sanitarista e psicanalista da SPB.

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