A roda gira, excelência

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Conhecimento é poder e como tal pode ser utilizado para o bem ou para o mal. As questões filosóficas que norteiam o conhecimento lidam  não apenas com seu desenvolvimento, mas principalmente com as questões éticas relativas ao seu uso e, até mesmo, por desconsiderá-lo em favor da ignorância.

A ciência como qualquer construção humana  não é apolítica na medida em que não está imune às consequências de seu uso. Afinal, se a falta de educação de qualidade pela ignorância e miséria decorrentes é um veneno lento, a ciência sem ética é uma arma de devastação em massa. Como esquecer o tal kit covid composto por vermífugo e remédio antimalária como um suposto tratamento paliativo ao vírus que só no Brasil ceifou quase 700 mil pessoas? A história há de registrar para as próximas gerações como o  negacionismo científico prestou perversa contribuição neste quadro macabro.

Se a Renascença é vista como o encerramento da idade média e o advento de uma era em que a razão seria a grande protagonista, essa época foi também o palco de uma notória perseguição aqueles que ousaram questionar as crendices prevalentes. Galileo Galilei, o pai da moderna astronomia, foi julgado e condenado por defender o Heliocentrismo de Nicolau Copérnico, teoria que discordava da crença de que a Terra era o centro do universo. Poderia, ainda, me estender por numerosos exemplos da intolerância que favorece a crença sobre a ciência, mas destaco a Revolução Cultural promovida por Mao Tsé-Tung nos anos 60, no qual educadores e cientistas foram linchados em praça pública. Então, é importante que jamais se esqueça que educadores e pesquisadores são particularmente perseguidos por regimes autocráticos, uma vez que a ciência cria conhecimento que altera o status quo do qual se servem.

O fato é que a ciência é o único reduto no qual o questionamento é requerido, visto que não admite dogmas, mas apenas teorias que necessitam ser comprovadas, caso contrário são descartadas. Daí porque a ciência, embora não seja isenta das demandas do mundo que a cerca, deve ser protegida dos arroubos conjunturais, em especial quando se apresentam tóxicos ao atentarem contra princípios e avanços civilizatórios. Guardadas as devidas proporções, está em curso no estado de Minas Gerais o mesmo ideário de controle político sobre a ciência.

Dias atrás, o professor Mário Neto, ex-presidente da Fundação de Amparo à Ciência de Minas Gerais (Fapemig) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), me alertou acerca dos desdobramentos na Assembleia Legislativa de Minas Gerais por conta da ingerência do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, sobre  a Fapemig, conforme expresso no decreto 48.716 de 23/10/2023. Decreto que quebra a autonomia de uma instituição que por razões inerentes à sua missão científica precisa possuir integral liberdade intelectual para o exercício de seus propósitos. Como consequência, daqui do sul das Gerais me sinto compelido a expressar alto e bom som meu desagravo: um pouco mais de respeito com a ciência, Senhor Governador!

A intervenção expressa no decreto do governador busca a extinção dos mandatos e a livre nomeação do diretor de ciência, tecnologia e inovação sem prazo definido. A situação ainda é mais grave, conforme salientam as duas maiores representações da ciência brasileira, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) ao explicitarem em nota que o decreto “apequena a Fundação hierarquicamente, ao rebaixá-la de órgão de Estado para órgão de governo”, visto que o decreto subordina a FAPEMIG à Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Da mesma forma, a maioria dos reitores mineiros reunidos no Fórum das Instituições Públicas de Ensino Superior do Estado de Minas Gerais (Foripes) divulgou nota na qual expressam suas preocupações quanto à decisão de alteração do Estatuto da Fapemig à revelia da comunidade científica do Estado. Neste contexto, gostaria de externar uma experiência pessoal acerca da pouca importância que o governador Zema parece possuir em relação à ciência e tecnologia.

Como reitor da Universidade Federal de Itajubá tive a honra em receber  V.Ex.ª em 2019 para tratarmos da reativação da construção daquele que seria o 8º maior centro laboratorial do setor elétrico no mundo e o único do hemisfério sul, o Instituto Senai de Inovação em Sistemas Elétricos. Lamentavelmente, a expectativa se transformou em frustração, visto que nada de concreto resultou da visita e até hoje as obras continuam interrompidas, de tal forma que o Brasil ainda não conta com esse indispensável centro de pesquisa e desenvolvimento, vital para sua infraestrutura energética. O discurso então proferido pelo governador deu a impressão aos presentes no lotado auditório do Instituto de Elétrica da universidade que Sua Excelência parecia não saber onde estava e nem qual era o objetivo de sua viagem à Itajubá, visto que se limitou a mencionar apenas o delicioso pé-de-moleque da vizinha cidade de Piranguinho e os buracos das rodovias mineiras.

A instrumentalização de uma instituição de Estado por um dado governo que é — graças à democracia — temporário, deve ser tratada com extrema preocupação. Todavia, quando se trata de ingerência sobre uma instituição cujo objetivo é financiar pesquisas científicas que, por definição, devem ser fundadas no questionamento dos problemas e soluções que afligem à população de um estado ou país, então, a coisa é ainda mais grave.

O orçamento da Fapemig conforme previsto na constituição mineira corresponde a, no mínimo, 1% da receita orçamentária do Estado. Portanto, seus recursos financeiros não são decorrentes da boa vontade do governante da hora, mas são garantidos legalmente. Em 2023 a Fapemig bateu recorde de execução orçamentária com cerca de R$470 milhões investidos em bolsas e demais recursos para o desenvolvimento de pesquisas que interessam ao povo mineiro. Com o aumento da arrecadação decorrente de melhoria na economia espera-se que em 2024 os recursos da Fapemig ultrapassem meio bilhão de reais para serem aplicados em projetos e pesquisas. Recursos, é preciso que se saliente, cuja destinação é feita mediante análise e seleção realizadas de forma isenta e criteriosa por especialistas da comunidade cientifica das instituições acadêmicas do Estado. Daí porque a manutenção do Estatuto atual, ou seja, sem intromissão governamental, evita o risco do controle autocrático da fundação e, como consequência, a possibilidade do uso indevido de seus recursos para propósitos alheios à promoção do conhecimento científico, tecnológico e inovador necessário para o desenvolvimento socioeconômico do Estado de Minas Gerais.

Seja o dirigente de agora ou os que virão, sejam eles bem-intencionados ou totalmente ignorantes sobre a importância da ciência, o fato é que um estatuto definido mediante contribuição da comunidade científica é o instrumento, de fato, capaz de protegê-la de eventuais contingências conjunturais.

O sussurro de Galileu, “a terra gira”, ecoa ao longo das eras para expressar a liberdade necessária para que os pesquisadores mineiros possuam, agora e sempre, a devida autonomia para bem contribuir para a solução dos desafios desta que é a segunda maior economia do Brasil.

Preste atenção, Senhor Governador, a Terra gira!

Dagoberto Alves de Almeida é professor Titular da Universidade Federal de Itajubá; foi Reitor da Unifei nos mandatos 2013-2016 e 2017-2020.

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