Sam Cyrous

A minha história em branco

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Faz uns dez anos que regressei ao Brasil onde vivi minha feliz infância. Saí do país numa bolha, como a maioria das crianças que têm oportunidade de estudar em escola particular e voltei sem entender todas as nuances das relações sociais.

Tanto que, nesse regresso mantive alguns comportamentos, como o uso de transporte coletivo. Estava com vários jovens num ponto de ônibus, ao lado de uma universidade privada, quando se aproximou um senhor de idade avançada. Eu ali, sem entender a vida, mexendo no celular. No canto de um olho percebi as pessoas se afastando e no canto do outro vi um homem se aproximando. Ouvi então um simples sussurrar “guarda o celular menino”, e ao levantar a cabeça para entender o que estava acontecendo, o homem se aproxima. Por baixo da barba cumprida e cinza e das roupas sujas, um ser humano, a menos de um metro de mim, olha em meus olhos e profere as seguintes palavras “sabe dizer que horas são?”. “Claro!”, respondo enquanto pego no celular. Digo as horas, ele agradece e continua a sua caminhada. Enquanto isso observo olhares de medo que se acalmam.

Aquela cena me foi muito marcante. Nunca até aquele dia havia eu visto a desigualdade e o medo juntas. Jovens por um lado e um idoso abandonado por outro. Pensei ter percebido o que se tratava. Até o dia que entrei no banco após o expediente vencido. O segurança me deu as boas-vindas enquanto seu colega gritava com um jovem que dizia ter que resolver a situação naquele dia enquanto ouvia “mas o expediente fechou, volte amanhã”. Pensei “deve ser o terno com o qual estou” que permite o contraste com a bermuda do rapaz e, por isso, a “gentileza” dos seguranças.

Veja bem, eu não entendia. Tentava compreender o que estava acontecendo. Já havia visto cenas de algum tipo de preconceito, mas essas tinham algo em comum — ainda não sabia o que! No dia que entrei no cartório e não revistaram a minha mochila mas revistaram a de um jovem office boy que vinha entregar um documento, fiquei estarrecido. Perguntei o porquê do tratamento a quem me atendia. Falei aos seguranças que deveriam revistar a todos como haviam feito com o rapaz. Até os bolsos ele teve que esvaziar — coisa que eu nunca fiz! Já entrei nesse mesmo cartório com celular na mão, enquanto falava com alguém. Não é detector de metais, não é segurança, é algo mais.

Ao caminhar pelo centro da cidade após o incidente, percebi. Quase seis meses de volta foi o tempo que demorei a ter a terrível constatação da verdade nua e crua. Todos os três negros. Nenhum deles era visto como branco. Essa era a diferença.

As pesquisas

São claras as pesquisas. A diversidade de histórias traz perspectivas distintas para enxergarmos problemas. Assim podemos enfrentar mais facilmente os cenários instáveis que vivemos. Se aceito que pensem diferente de mim, abro minha mente para novas possibilidades e a criatividade se torna algo genuinamente meu. Empresas com maior diversidade conquistam diferentes talentos, melhoram a comunicação com diferentes consumidores e, obviamente, possuem melhores resultados econômicos. Uma pesquisa internacional (Diversity Matters, da McKinsey) comprova que empresas com maior diversidade étnico-racial ou de gênero têm mais retorno financeiro que a mediana das empresas de seus países (35% ou 15%, respectivamente).

Outros estudos dizem a exposição à diversidade aumenta ansiedade e stress (Schulz et al., 2008; Wickrama & Bryant, 2003). Num caso, pessoas expostos à diversidade em seus bairros demonstraram ter comportamentos de desconfiança (Putnam, 2007).

Mas afinal, diversidade é boa ou má?!

Há uns dias me deparei com uma pesquisa que me chamou a atenção. Em 2013, num trem onde todos eram do mesmo grupo étnico entraram pessoas de outros grupos étnicos. Algumas pessoas ficaram indignadas, assustadas, incomodadas, enquanto outras estavam “de boa”. Burrow e Hill (os pesquisadores) fizeram perguntas às pessoas; e a conclusão? As primeiras não tinham clareza do sentido de suas vidas, enquanto as segundas tinham. Isso faz pensar, não é? Ter clareza de nosso sentido de vida nos faz aceitar o outro, porque, se eu sei onde quero chegar, por quê vou me incomodar com a diferença? Mas ela não é suficiente para concluir muita coisa: afinal não se sabia se sentido de vida conduzia a aceitar o outro ou a ignorar a sua diferença.

Então, analisaram três situações.

1) Mostraram projeções estatísticas (sobre um cenário futuro) a dois grupos hegemônicos. Numa projeção viram seu grupo étnico tornar-se minoria e na outra continuariam maioria. Os do primeiro grupo demonstraram mais stress. Só que… o nível de stress era menor para aqueles que tinham clareza do sentido de suas vidas!

2) Analisaram traços de personalidade como instabilidade emocional. Presente nas pessoas com desconforto étnico-racial.

3) Participantes que escreveram sobre sentido de suas vidas, antes de entrar noutra pesquisa, demonstraram estar mais de boa com cidades com ampla diversidade, sugerindo que lembrar de seu senso de propósito pode aliviar motivações segregadoras. Se pensarmos em ambiente de trabalho, matrimônio, escola onde matricular filhos, instituições onde estudar, onde sentar num metrô ou uma sala de espera, em nossos colegas e amigos…, percebemos como isso tudo pode ser influenciado pela clareza de uma resposta a esta pergunta: “para quê estou aqui?”.

Viktor Frankl traz o sentido da vida como força motriz da existência. Ela pode ser descoberta ao criarmos algo que oferecemos a alguém, ao nos abrirmos ao amor de alguém ou uma causa, e ainda ao sofrer em comunhão com os demais. Assim, para descobrirmos o nosso “para quê” precisamos expandir nosso círculo e começamos, inevitavelmente, a buscar objetivos coletivos para a vida.

A doença

Qualquer um facilmente compreende que racismo, adequadamente tipificado como crime na legislação penal brasileira, é nefasto e doentio, que prejudica o bem-estar de todos. Todos sabemos que há maus-tratos, abusos, violações impunes para um segmento populacional. A diferença é que alguns compreendemos as causas e outros não. Alguns nos incomodamos e outros não. Alguns abraçamos a diversidade e outros temem. E as pesquisas são claras: essas pessoas não entendem “para quê” aqui estão! A pessoa bloqueada sobre sua essência, sobre o sentido de seu ser não conseguirá jamais compreender outra pessoa na plenitude de seu ser.

Se compreendermos esses fenômenos como correlatos, como as pesquisas apontam, surge uma questão. Será o racismo — vil, ultrajante e nojento — a doença, ou o sintoma de uma doença pior? Que doença poderia ser pior ainda? A resposta parece simples: alienação do senso de propósito.

É essa mesma alienação que leva a comportamentos agressivos, conformismo, uso de drogas, ideação suicida, famílias desestruturadas, segundo Frankl e a sua ciência, a Logoterapia. Como os piores e mais nojentos sintomas de uma doença grave, o racismo se estabeleceu em nossas sociedades, mas só podemos nos livrar dos sintomas se curarmos a doença da falta de sentido. Para eliminar um mal tão forte e pernicioso como o racismo precisamos ensinar nossas crianças, pré-jovens e jovens a entenderem seu papel no mundo.

Hoje, depois dos incidentes do começo do artigo, percebo que meu papel não é dizer o que acho do racismo, é lutar contra ele com todas as armas: vezes cuidando do sintoma, denunciando e jamais me calando; outras tratando da doença, tentando fazer as pessoas compreenderem que a vida é muito mais do que ego, sede de poder ou prazer; que podemos mudar o mundo se compreendermos nossa unidade, que somos uma espécie plural e compreendendo quem somos poderemos aceitar o outro como ele é: um ser humano, que só quer saber as horas e continuar seu caminho.

Sam Cyrous (Instagram: sam.cyrous) é Psicólogo (CRP 09/8178), Logoterapeuta, Psicoterapeuta de casais e família, StoryTeller, e curador do TEDxGoiânia

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