Miguel Gustavo de Paiva Torres

A família do diabo

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Quem se der ao trabalho ou ao prazer de assistir o documentário “A Família”, produzido pela Netflix com base no livro do jornalista norte-americano Jeff Shattel, vai  ter uma compreensão mais clara e profunda da atuação política das igrejas evangélicas no mundo, principalmente em países chaves da periferia como o Brasil, na América do Sul, e a Nigéria, na África.

Tudo começou no pós-guerra, na década de 50, com uma espécie de máfia informal que reuniu os principais homens de negócios da cidade de Seattle, sob a liderança ideológica de um imigrante norueguês, Abraham Vereide.

Para Vereide, a evangelização em nome de Jesus de Nazaré deveria ser direcionada prioritariamente às elites norte-americanas e mundiais, com um pensamento e um objetivo único: tomar e manter o poder político e econômico nas mãos desses iluminados seguidores de Jesus mundo afora.

Vereide foi sucedido por um dos homens mais poderosos e invisível do cenário político e ideológico dos Estados Unidos: Douglas Coe, conhecido como Doug Coe, organizador do “National Prayer Day” em Washington, prestigiado e assistido por todos os presidentes norte-americanos, de Dwight Eisenhower a Donald Trump, incluindo também todos os presidentes democratas, inclusive Barack Obama.

Doug Coe tinha por parâmetros para sua organização a invisibilidade, o direcionamento para as elites políticas e empresariais; a mundialização do controle ideológico pela disseminação de grupos poderosos e influentes no estilo centralizado e hierarquizado da máfia italiana e do partido nazista alemão, suas principais referências organizacionais. É o que ele diz e repete em vários momentos de sua atuação mostrados pelo documentário.

Sem viés ideológico era a pregação de Doug Coe. Jesus e apenas Jesus. A conquista do mundo se daria apenas com o nome do pobre e maltratado líder popular, Jesus. Por isso foi pessoalmente a Trípoli em jato privado para se encontrar com Muammar Khadaff e oferecer o apoio de sua associação.

O mesmo repetiu com o sanguinário ditador da Nigéria, Sani Abacha, e com o também presidente de Uganda, Museveni, que aproveitou as ideias de Coe sobre a família para implantar a pena de morte para homossexuais em seu país.

O trabalho iniciado por Vereide nos anos 30 e continuado por Doug Coe a partir dos anos 50, espalhou missionários que trabalham   para conversão há mais de 70 anos, mundo afora, construindo o partido invisível de Jesus, destinado ao controle ideológico global do planeta. Sem viés ideológico. Tanto faz ser Obama ou Trump, Lula ou Bolsonaro, não importa. O que importa é a adesão à Jesus. Condição única para fazer parte da “familia”.

Na ideologia de Coe, quanto mais pecador e mais sacripanta for o ser humano que lidera uma comunidade ou um país, mais merecedor de conversão e de integração à “família“.  A família de Jesus.

Dougla Coe faleceu em 2017 e foi sucedido por Douglas Burleigh,  quem recepcionou Donald Trump no último “National Prayer Day” em Washington e o influenciou para adotar a prática de orações diárias permanentes na Casa Branca.

Para a “familia”, Trump é a melhor recompensa que obtiveram até agora nos seus propósitos de dominação ideológica mundial.

Este documentário me fez recordar as centenas de missionários “crentes” que perambulavam pelas periferias secas e miseráveis do meu Nordeste, nos anos 50 e 60, espalhando as boas novas de Jesus e plantando as sementes do enorme poder político das igrejas evangélicas no Brasil, que agora já penetram e se consolidam na cobiçada Amazônia.

Douglas Coe, invisível e agora etéreo, ainda deve puxar os cordéis viajando nas nuvens que cruzam céus e terras.

Miguel Gustavo de Paiva Torres é diplomata.

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