Everardo Gueiros

A eleição da confusão

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Um magistrado é acima de tudo um escravo da lei. Esta não é uma mera figura de retórica, mas um dever, algo que faz parte da liturgia do cargo. Deve ser uma prática do dia a dia, uma cultura, uma forma de agir.

Lamento profundamente que a lei não tenha sido observada em sua integração nas eleições deste ano. E digo isso com a experiência de quem já teve a honra de ocupar uma cadeira no Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal.

Nestas eleições o TSE ignorou parte do Código Eleitoral que vigora há exatos 55 anos. O artigo 158 deste diploma legal é claríssimo:

Art. 158. A apuração compete:
I – às Juntas Eleitorais quanto às eleições realizadas na zona sob sua jurisdição;
II – aos Tribunais Regionais a referente às eleições para governador, vice-governador, senador, deputado federal e estadual, de acôrdo com os resultados parciais enviados pelas Junta Eleitorais;
III – ao Tribunal Superior Eleitoral nas eleições para presidente e vice-presidente da República , pelos resultados parciais remetidos pelos Tribunais Regionais.

Faltou cautela e bom senso onde deveria haver sobrando. O presidente do Tribunal Luís Roberto Barroso foi para os Estados Unidos, convidado a acompanhar as eleições e relatou aos jornais ter visto confusão, guerra de versões, mas não se deparou com nenhuma fraude. Gastou um bom tempo falando da eleição dos outros, quando deveria estar focado na nossa.

Ao que parece, a confusão veio na bagagem para nossa eleição desse ano. Falo isso, porque certamente estas eleições tiveram a apuração mais confusa dos últimos tempos, fruto de problemas tecnológicos não previstos pelo fornecedor do TSE e da decisão ilegal de concentrar a apuração em Brasília, esquecendo do que prevê o Código Eleitoral. Os atrasos acabaram complicando a divulgação dos resultados e os críticos do sistema brasileiro, um dos mais eficientes do mundo, se sentiram à vontade para ocupar as redes sociais e promover uma verdadeira guerra de versões.

O TSE jamais poderia tomar para si uma obrigação dos tribunais eleitorais, porque cabe a ele totalizar as eleições presidenciais e somente estas. As demais ficam a cargo dos TREs, os quais têm feito um magnifico trabalho ao longo das últimas 15 eleições ocorridas desde a promulgação da Carta de 1988. Foi um erro subestimar a experiência destes tribunais, os quais viveram um processo de aperfeiçoamento contínuo ao longo de três décadas e hoje detém um conhecimento altamente valioso, do qual não devemos e não podemos prescindir.

É claro que a decisão do TSE de centralizar a totalização dos votos acabou gerando um enorme desconforto entre os magistrados e suas equipes. Prevaleceu a prudência e maturidade diante da confusão gerada tanto pela decisão, quanto pelos problemas no equipamento da empresa de tecnologia fornecedora do TSE.

Sabiamente os juízes e seus auxiliares decidiram pela discrição e não colocaram mais lenha na fogueira, preferindo resolver a questão interna corporis de forma a evitar que ela se repita no futuro.

Particularmente estranhei que a mídia não tivesse dado o devido espaço para este fato, embora tenha registrado os problemas com a empresa de tecnologia. Parece que faltou informação ou disposição para investigar a fundo o que estava acontecendo.

A questão é que todo transtorno poderia ter sido evitado se valesse de verdade a máxima de que o magistrado deve ser escravo da lei, não um intérprete, mas um executor daquilo que prescreve o diploma legal.

É lamentável ver o retrocesso do sistema eleitoral num momento de suma importância para o país. A sociedade fala através das urnas e a apuração de uma eleição tem de ser transparente, rápida e acima de tudo eficiente. Nada mais do que isso. Simples como a música de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, quando dedilhava aquela sanfona repleta de melodia e sabedoria, e cantava: “não é preciso fazer confusão”.

Everardo Gueiros, advogado, foi conselheiro federal da OAB, presidente da Caixa dos Advogados do Distrito Federal, desembargador do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) entre os anos de 2016 e 2018 e Secretário de Projetos Especiais do governo do Distrito Federal nos anos de 2019 e 2020.

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