Crime da 113 Sul, Brasília

Caso Villela expõe compromisso com o erro entre delegada arbitrária e promotor vaidoso

Ninguém pagou preço tão alto pelas barbeiragens da polícia quanto Adriana, filha das vítimas

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A expressão “kafkiano”, relativa ao escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), classifica uma situação desesperadora, claustrofóbica e traumática, na qual não se visualiza solução possível. Nela, o personagem, mesmo inocente, não consegue impedir o desenlace trágico dos acontecimentos.

Não me ocorre definição melhor para o calvário vivido, nos últimos dez anos, pela arquiteta Adriana Villela, às vésperas de ir a júri popular, em Brasília, sob a acusação infame, baseada em indícios estúpidos, de ser mandante do assassinato dos pais.

Em mais de 40 anos como repórter da área criminal, cobri chacinas, acidentes aéreos, tiroteios, sequestros e uma lista extensa de casos de violência, os mais chocantes. Nunca, porém, me deparei com uma investigação tão desastrada como o inquérito sobre o chamado “Crime da 113 Sul”.

Ex-ministro do TSE e advogado do ex-presidente Fernando Collor no processo de impeachment, José Guilherme Villela foi assassinado a facadas, dentro de casa, junto com a mulher, Maria, e a empregada do casal, Francisca Nascimento, em agosto de 2009.

O crime chocou pela brutalidade e chamou a atenção do País pela sucessão de atropelos da polícia e do Ministério Público. Mas o caos na apuração não foi obra do acaso. Foi construído passo a passo, com esmero incansável, por operadores do direito pagos pelo erário público para levar justiça aos cidadãos.

Maria e José Guilherme Villela.

Como na literatura dos acidentes graves, o desfecho atabalhoado do inquérito decorre de um conjunto de fatores combinados entre si, numa mistura de incompetência e irresponsabilidade com má-fé, vaidade e soberba, além de erros primários.

A apuração passou por três delegacias diferentes, que produziram resultados distintos e está eivada de barbeiragens. Em dez anos de idas e vindas, foram presas 14 pessoas, 11 delas soltas por falta de provas.

Acusados foram torturados para confessar culpa e uma chave do apartamento do casal assassinado chegou a ser plantada na casa de inocentes para fabricar culpados. Até uma vidente foi incluída nos autos, com supostas “mensagens psicografadas” do ex-ministro apontando os criminosos.

Por conta das trapalhadas, a delegada da 1ª DP Martha Vargas, primeira encarregada do caso, foi demitida do cargo e condenada a 16 anos de prisão.

Ninguém, todavia, pagou um preço tão alto pelos atropelos da investigação quanto Adriana Villela, filha do casal, presa duas vezes arbitrariamente, denunciada pelo Ministério Público como mandante do crime e pronunciada para ir a júri popular.

Cumprem pena como autores materiais do triplo homicídio Leonardo Campos Alves, ex-porteiro do prédio onde o casal morava; seu sobrinho, Paulo Cardoso Santana; e Francisco Mairlon Aguiar.

Presos em novembro de 2010, em Montalvânia (MG), onde moravam na ocasião, Alves e Santana confessaram ter praticado o crime para roubar (latrocínio), mas, algumas semanas depois, passaram a incriminar a arquiteta como mandante.

Preso, ele confessou haver matado para roubar, mas em Brasília passou a acusar Adriana.

Em depoimento à justiça, a delegada Deborah Menezes, que chegou aos criminosos ao seguir por conta própria uma pista passada por um ex-detento, revelou que, interrogado várias vezes, Leonardo lhe garantiu se tratar de latrocínio.

“Cansei de perguntar se havia mandante e ele sempre disse que não”, relatou a delegada, nos autos. Ela disse que citou nominalmente Adriana, indagando se a arquiteta esteve na cena do crime, ao que o criminoso respondeu: “Se ela entrasse lá, eu a mataria do mesmo jeito, porque ela é arrogante e atrevida”.

A nova designada para o inquérito, delegada Mabel de Faria, da Coordenação de Investigação de Crimes contra a Vida (Corvida), assumiu então o caso já com má vontade em relação a Adriana e passou, segundo a defesa, a construir a tese de que a arquiteta seria mandante da chacina.

Desse modo, focou todas as investigações sobre Adriana e seus amigos. Sem jamais se aproximar de nada que tivesse relação com os fatos ocorridos.

O relatório de chamadas telefônicas, um das provas levantadas pelas investigações da Corvida, foi deliberadamente omitido, junto com outros que ajudam a esclarecer a inocência da arquiteta, e só foi conhecido por ter sido solicitado pela defesa de Adriana.

Mabel, a outra delegada. A Corvida omitiu do inquérito provas que inocentavam Adriana.

A Corvida, simplesmente, selecionava e omitia do inquérito as provas que atestam a inocência da acusada.

Há relatos nos autos de que ela passou também a pressionar os criminosos e seus advogados a mudarem os depoimentos para confirmar sua tese, em troca de benefícios penais.

O advogado Geraldo Flávio Soares, por exemplo, militante de movimentos sociais de Montalvânia, denunciou que Mabel lhe propôs convencer o réu confesso Paulo Cardoso a reciclar o depoimento para colocar Adriana na cena do crime.

Conforme o relato do advogado, Mabel lhe pediu que explicasse ao réu as vantagens de assumir crime de mando (encomendado), cuja pena é bem menor, em vez de latrocínio (roubo com morte), que estipula pena de até 30 anos.

Soares disse que foi então à cela do preso, explicou os riscos de manter a versão original e descreveu o seguinte diálogo com ele: “Paulinho, a casa caiu. Se alguém mandou, entrega logo, fala tudo”.

Ainda conforme o relato do advogado, o réu foi taxativo: “Não doutor, ninguém mandou. Eu e o Leonardo matamos. Não teve mandante”. Depois de algumas semanas em poder da Corvida, porém, os dois assassinos ajustaram suas versões ao que queria e passaram a sustentar que Adriana teria encomendado o crime.

Adriana Villela, filha do casal assassinado.

Ao longo desses dez anos com uma espada de Dâmocles sobre a cabeça, Adriana tem vivido terrível drama pessoal. Humilhada publicamente com a falsa acusação e impedida de levar uma vida normal, ela se viu forçada a sair de Brasília. Mora atualmente no Rio, sob proteção de amigos e familiares.

Fruto da ação articulada de uma delegada arbitrária com um promotor vaidoso e um juiz inexperiente, o indiciamento de Adriana se ampara em suspeitas muito frágeis.

A principal “prova” são impressões digitais da filha na casa dos pais (pasmem). Um método de datação não reconhecido pela técnica forense e descartada pelo Instituto de Criminalística e pela Procuradoria-Geral da República, indicaria que ela esteve na casa dos pais em data próxima à chacina.

Uma testemunha que passou defronte ao bloco dos Villela, na 113 Sul, disse ter visto um vulto de mulher no apartamento no horário do crime. Mabel suspeita, sem qualquer prova, que seria Adriana. Mesmo depois de a arquiteta ter sido submetida a um reconhecimento que não a identificou como sendo a pessoa vista.

O sólido álibi de Adriana confirma que ela estava lanchando na casa de uma amiga, na Vila Planalto, durante todo o período em que a policia afirma ter ocorrido o crime.

Outra “evidência” apontada pela acusação: uma carta, entre dezenas amistosas trocadas entre Adriana e a mãe, Maria, indica que elas discutiram asperamente (como se isso não fosse comum em qualquer família).

Como o pai era muito rico, dava uma mesada de R$ 8 mil a cada um dos dois filhos. Supostamente ela queria mais e, por interesse financeiro, teria mandado matar os pais. Ora, vejam só.

A “vidente” que “ajudou” a polícia: acusada de obstruir a investigação.

Mabel e o promotor Maurício Miranda não sabem explicar por que razão Adriana foi a primeira a levantar suspeita sobre o ex-porteiro, que acabou confessando o crime.

A arquiteta relatara as suspeitas que ouviu do pintor Deni e insistia que Leonardo deveria ser investigado, inclusive por causa do relato da mãe, sobre uma invasão de domicilio, ocorrida algum tempo antes.

Ao longo dos anos, as suspeitas de ambos se desmancharam como fumaça no ar. Mesmo assim, os dois se mantiveram solidários no compromisso com o erro.

A praxe do Estado de Direito indica que o ônus da prova cabe a quem alega, ou seja, à polícia e ao Ministério Público. Nesse caso, a defesa é que se viu na contingência de provar a inocência da ré. O que o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tem feito com maestria.

O cruzamento dos extratos fornecidos pelas companhias telefônicas com as notas fiscais de compras, depoimentos e outras provas materiais fecham as 16 horas ativas da rotina de Adriana naquele fatídico 28 de agosto de 2009.

O relato de Adriana sobre seu trajeto, já no primeiro depoimento, revela-se compatível com o que restou mapeado no georreferenciamento das torres de telefonia celular.

Entretanto, uma oscilação de sinal de um minuto entre uma e outra torre de telefonia (isso mesmo, um minuto), oscilação frequente e natural conforme atestam os peritos, é utilizada pela polícia para tentar afirmar que ela não estaria onde afirma.

Pela lógica de Mabel e Miranda, a arquiteta, nesse tempo, teria dirigido 21 quilômetros de carro, entre Asa Sul, Asa Norte e a Vila Planalto; mantido reunião com os assassinos e autorizado o crime. O laudo pericial afirma que ela teria que ter dirigido a 394 km/h, no horário do rush de Brasília, para realizar a proeza.

Martha, a delegada que inaugurou as barbeiragens da polícia, acabou condenada.

Até onde apurei (me afastei das investigações quando sai do Estadão, em 2013), o procurador Maurício Miranda comprou a versão fabricada por Mabel. Quando se deu conta, mais adiante, por vaidade, não voltou atrás para não se desmoralizar, como ocorreu com Martha Vargas.

Depoimentos de peritos que fizeram a coleta de impressões no dia 31 de agosto de 2009, quando os corpos foram achados, já haviam revelado que, por “barbeiragem” de um iniciante, as digitais colhidas na portaria foram misturadas indevidamente com as colhidas dentro do apartamento.

Por conta disso, as digitais anexadas aos autos foram recolhidas só um ano depois, com todos os danos temporais à qualidade da prova.

Mais: as roupas das vítimas, que poderiam conter valiosas pistas sobre os criminosos, foram queimadas pelo IML na mesma noite em que os corpos foram encontrados. Segundo a polícia, porque não tinham armários suficientes para conservá-las.

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