Saúde questionada

Tremores de Merkel testam tabus da mídia alemã e ampliam dúvidas sobre sucessão

Chanceler alemã segue trabalhando, após ser vista tremendo incontrolavelmente

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Em seus quase 14 anos à frente do governo alemão, Angela Merkel sempre chamou a atenção em seu país por mostrar uma energia que parecia inesgotável. Em 2011, ela descreveu sua rotina diária de 16 horas de trabalho como “um prazer”.

“Ela sempre foi dura consigo mesma”, diz o jornalista Stefan Kornelius, autor de biografia sobre a chanceler alemã, que completa 65 anos neste mês. “Mas agora a preocupação está crescendo, porque ela, que é conhecida pela robustez, parece doente.”

Em pouco mais de uma semana, Merkel foi vista duas vezes tremendo incontrolavelmente em público. Na primeira, em 18 de junho, estava sob um sol escaldante em Berlim, com temperatura superior a 30 °C, na cerimônia de boas-vindas ao presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski.

A tremedeira, que durou um minuto, foi atribuída à desidratação. “Bebi, pelo menos, três copos de água. Agora me sinto bem de novo”, disse ela.

A imprensa alemã deu pouco destaque. Há décadas os principais veículos estabeleceram uma regra não escrita de evitar especular sobre a saúde de figuras públicas.

“O direito dos cidadãos à informação acaba se chocando aqui com o direito à privacidade dos políticos”, disse o historiador Paul Nolte, da Universidade Livre de Berlim, ao jornal Die Welt.

O Tagesschau, principal telejornal do país, dedicou apenas alguns segundos ao tema. Jornais e revistas publicaram poucas linhas, destacando as explicações da chanceler.

Houve críticas à curiosidade de parte do público. “Por que diabos 280 mil pessoas quiseram ver Merkel tremendo no YouTube? Será isso eticamente diferente das pessoas que observam e filmam acidentes em autoestradas?”, escreveu um editor do jornal esquerdista Tageszeitung.

Merkel voltou a tremer em 27 de junho. Desta vez, por dois minutos, em um espaço fechado com ar-condicionado, na apresentação da nova ministra da Justiça. Segundo um interlocutor do governo, o episódio foi uma “reação psicológica” ao primeiro tremor. “Não há razão para se preocupar.”

Depois disso, alguns jornais, de forma comedida, ouviram médicos, que atribuíram as reações à exaustão ou a problemas circulatórios. O tabloide Bild estampou a manchete “O quão doente está a chanceler?”, mas se limitou a reproduzir explicações oficiais.

Veja o registro dos tremores feito pela sucursal brasileira da TV estatal alemã Deutsche Welle, DW Brasil:

 

Questionamento legítimo e ‘abutres’

Alguns lembraram que Merkel já havia sofrido tremores em viagem ao México em 2017, mas destacando que a temperatura superava 30 °C. Poucos especularam sobre o estado emocional da chanceler, cuja mãe morreu em abril.

“Os abutres já estão circulando na internet, felizes por Merkel estar fisicamente exausta”, escreveu Berthold Kohler, editor do diário Frankfurter Allgemeine Zeitung. Ele, porém, apontou que é legítimo perguntar sobre a saúde do chefe de Estado em uma democracia.

Líderes de governos alemães têm um histórico de esconder enfermidades. Willy Brandt tinha depressão. Seu sucessor, Helmut Schmidt, descreveu sofrer dezenas de desmaios. Mas isso só se tornou público com eles já fora do cargo.

Horst Seehofer, atual ministro do Interior, resumiu a filosofia da sua classe em 2005, três anos depois de quase morrer de uma inflamação do coração, divulgada como gripe. “Não faz parte da imagem de um político parecer doente e fraco.”

Mesmo antes das preocupações com a saúde de Merkel, o partido dela, CDU (União Democrata-Cristã), e seu braço bávaro, a CSU, já vinham sendo tomados por uma luta para decidir quem será o candidato à sucessão da chanceler.

“Os tremores de Angela Merkel sacodem toda a União”, publicou o jornal Tagesspiegel.

Merkel disse que quer deixar o posto até o fim de 2021 e vem apostando na sua apadrinhada Annegret Kramp-Karrenbauer, chamada de AKK. Mas isso não depende só de Merkel continuar até 2021, mas também de selar a paz entre caciques da CDU que querem entrar nessa corrida.

Para piorar, o SPD (Partido Social-Democrata), parceiro de coalizão da CDU, também vem sofrendo pressão da base para abandonar Merkel. Uma pesquisa mostrou que 70% dos alemães não acreditam que AKK tenha capacidade para se tornar chanceler.

Mas aos desafiantes não interessa que Merkel deixe o posto antes da hora. A CDU vem perdendo terreno entre o eleitorado nacional.

Mesmo a liderança do SPD vem tentando recuperar influência sem correr riscos numa eleição antecipada. E a maioria dos alemães prefere esse cenário: 59% da população quer que Merkel lidere a coalizão por mais dois anos.

Caso eleições antecipadas sejam convocadas, os principais beneficiários seriam os Verdes, que ultrapassaram a CDU nas pesquisas. A colíder da sigla, Annalena Baerbock, foi uma das poucas a explorar publicamente os tremores, insinuando uma ligação com a mudança climática. “O calor não poupa nem os chanceleres”, disse. A fala repercutiu mal e ela pediu desculpas.

Trabalho como resposta

Merkel parece ter afastado as especulações com ações. No domingo passado, após uma maratona de reuniões no Japão, foi direto para Bruxelas articular a escolha da nova liderança da União Europeia.

A primeira reunião se estendeu pela noite e durou quase 21 horas. “Boas coisas demandam tempo”, disse a chanceler alemã. Ao final, ela conseguiu assegurar a indicação de uma de suas ministras, Ursula von der Leyen, para a chefia da Comissão Europeia. (Com informações da Folhapress)

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