O dia 21 de dezembro será lembrado como um divisor de águas no curso das investigações contra Carlos Ghosn, preso no Japão sob alegações de que teria causado prejuízos financeiros à Nissan.
Pela primeira vez, a promotoria tomou atitudes opostas em relação aos dois detidos: obteve junto à Corte de Tóquio um novo mandado de prisão contra Ghosn, até 1º de janeiro, desta vez por suspeitas múltiplas de “traição especial” (tokubetsu hainin), mas não fez o mesmo com seu braço direito, o americano Gregory Kelly, que está preso na mesma Casa de Detenção em Tóquio, mas que deve deixar a cadeia em breve.
A atitude distinta da promotoria em relação a ambos fez aflorar diferentes interpretações. A visão superficial dos acontecimentos seria de que a nova prisão de Ghosn foi uma manobra desesperada da promotoria diante de um fato que pegou todos de surpresa: a Corte de Tóquio negou na quinta-feira (19) o pedido de prorrogação de sua detenção.
Já a visão de alguns ex-promotores, como o advogado Yoji Ochiai, é que a verdadeira meta da promotoria estava, de certa forma, camuflada: o principal objetivo não era incriminar Ghosn pela tal sonegação de uma renda falsificada, mas sim, condená-lo justamente pelos atos de traição e prejuízos financeiros que teria causado durante anos para a empresa à qual servia -a Nissan.
A acusação de fraude na declaração de renda seria apenas o ponto de partida, uma maneira de ganhar tempo para juntar mais provas relacionadas a prejuízos já causados contra a Nissan. Essa teoria ajudaria a explicar por que a promotoria prendeu Ghosn em novembro por uma acusação tão passível de ser refutada.
Duas acusações
Duas acusações graves motivaram a nova ordem de prisão do executivo. A primeira é a de que ele teria transferido prejuízos de aproximadamente 1,8 bilhão de ienes dos seus investimentos pessoais (que surgiram após a crise financeira mundial em 2008) para a Nissan. Segundo o diário Yomiuri, o banco para o qual Ghosn ordenou a operação pediu inicialmente que ele submetesse isso à aprovação da diretoria da Nissan, mas acabou cedendo e realizou a transferência sem essa aprovação.
Chama a atenção o fato de que a penalização dos crimes de traição especial prescreve depois de 7 anos. Por essa lógica, não haveria mais como indiciar Ghosn, mas a promotoria sustenta que o crime ainda não prescreveu porque ele passa grande parte do ano fora do Japão (Ghosn tem as nacionalidades brasileira, francesa e libanesa, e comandava também a Renault francesa).
A segunda acusação é a de que teria transferido um total de US$ 14,7 milhões da conta de uma empresa afiliada da Nissan para a conta de um conhecido residente na Arábia Saudita. As transferências ilícitas teriam acontecido entre junho de 2009 e marco de 2012.
No sistema judiciário japonês, “tokubetsu hainin” é usado geralmente para incriminar membros do alto escalão das empresas, que se aproveitam do patrimônio da empresa em benefício próprio e, com isso, causam prejuízos a ela. Prevê uma pena de até 10 anos e multa de até 10 milhões de ienes, ou ambos.
Esses valores são exatamente o dobro das penalizações previstas para funcionários comuns que cometem traição contra o empregador. No caso do “Hainin” (traição), a pena é de até cinco anos de prisão e até 500 mil ienes de multa.
Kelly
Tanto Ghosn como Kelly estão presos desde 19 de novembro, sob a mesma acusação de fraude financeira. Ghosn teria ordenado a sonegação deliberada de informações sobre seus rendimentos futuros, e Kelly teria executado suas ordens.
Ambos vêm negando essas acusações, argumentando que não eram rendimentos garantidos, apenas um acordo prévio sobre valores para prestar consultoria após se aposentar da Nissan. Os especialistas faziam coro ao dizer que o grande tema de debate no julgamento seria se esses rendimentos eram uma “promessa sem valor legal” ou um “compromisso com valor”.
Os advogados de Kelly já entraram com o pedido de libertação junto à Corte Distrital de Tóquio. Aparentemente, não houve tempo hábil para o americano efetivar o pagamento da fiança para a soltura, que segundo fontes da promotoria, costuma ocorrer somente nos dias úteis.
Como esta segunda-feira (24) é feriado nacional no calendário japonês (no Japão, os feriados costumam ser adiados para a segunda-feira, para poder emendar com o fim de semana), todos apostam que Kelly seja liberado na terça-feira (25) -já que o Natal não é feriado no país.
Quanto a Ghosn, deverá ficar até o dia 30, mas a maioria aposta na possibilidade de ele virar o ano na detenção. (Folhapress)