Cocaleiro já era

Evo Morales e seu vice renunciam após ‘conselho’ do comandante do Exército

Revolta contra fraudes nas eleições forçou a renúncia do político que tentava se perpetuar no poder

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Pressionado pela oposição, pelas Forças Armadas e por três semanas de intensos protestos no país, Evo Morales renunciou à Presidência da Bolívia neste domingo (10) depois de 13 anos no poder. Ele é acusado de fraudar sua quarta reeleição, inclusive pelos observadores da Organização dos Estados  Americanos (OEA), mas em pronunciamento o cocaleiro disse ter sido vítima de “um golpe cívico, político, policial”.

“Não roubei nada. Se acham, apresentem uma prova. Meu pecado é ser indígena, dirigente sindical, cocaleiro. Quero pedir desculpas por ter sido exigente durante o trabalho. Não foi para Evo, foi para o povo boliviano. Aqui não termina a vida, segue a luta”, disse ele, encerrando a fala.

Na sequência do anúncio, houve uma série de renúncias. O vice-presidente, Álvaro García Linera, que ficou ao lado de Evo durante o pronunciamento, o presidente da Câmara, Victor Borda, e a presidente do Senado, Adriana Salvatierra, deixaram seus cargos, além de dois ministros do governo.

Um deles, César Navarro, titular da pasta de Mineração, abdicou do posto após manifestantes queimarem sua casa.

Comandante do Exército deu o seu recado na TV.

Assim, o próximo na linha de sucessão, que deveria assumir enquanto não forem convocadas novas eleições, seria Petronilo Flores, presidente do Tribunal Constitucional.

No entanto, a senadora Jeanine Añez, segunda-vice-presidente do Senado, disse a uma TV local que a Presidência do país, neste momento, corresponde a ela. Explicou que assume o posto porque os ocupantes de cargos que, pela Constituição, deveriam assumir a Presidência também renunciaram.

De acordo com Jeanine, ela assumirá a Presidência para convocar uma sessão do Congresso e chamar novas eleições.

Eleições fraudadas, povo na rua
Na noite do dia 20 de outubro, o órgão responsável pela apuração das eleições, com 80% das atas apuradas, divulgou os números do sistema de contagem rápida. O resultado levava à disputa de um segundo turno entre Evo e o opositor Carlos Mesa.

Três horas depois, porém, essa contagem foi interrompida por 24 horas, enquanto ocorria a apuração voto a voto. Quando por fim foram anunciados os novos dados, Evo aparecia à frente por pouco mais de dez pontos percentuais de vantagem, o que dava a ele a reeleição já em primeiro turno.

As acusações de fraude geraram manifestações que já deixaram três mortos e mais de 300 feridos nas principais cidades da Bolívia, e a pressão nas ruas fez com que o governo aceitasse uma auditoria da contagem pela OEA (Organização dos Estados Americanos).

Evo Morales ao desembarcar em Cochabamba, neste domingo.

Os resultados da verificação seriam divulgados apenas em 13 de novembro, mas foram adiantados “por conta da gravidade das denúncias”, de acordo com Luis Almagro, secretário-geral do órgão, em um comunicado no qual pedia que a eleição de outubro fosse “anulada e que o processo eleitoral começasse novamente”.

Anúncio de eleições enfureceu a população 
Na manhã deste domingo, então, Evo convocou uma nova eleição. Em vez de arrefecer a tensão no país, no entanto, o anúncio teve o efeito inverso.

O comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, fez um pronunciamento na TV à tarde, em que sugeria a Evo renunciar para pacificar as ruas.

Por volta das 17h (horário de Brasília), o avião presidencial boliviano decolou do aeroporto de El Alto, próximo a La Paz, onde o presidente estava desde a manhã, alimentando especulações de que ele poderia estar deixando o país.

Mas a aeronave aterrissou no aeroporto de Chimoré, perto de Cochabamba, um reduto político de Evo e a partir de onde fez o anúncio da renúncia.

Unidades policiais rebeladas
A declaração do comandante das Forças Armadas é a ponta final do movimento de pressão das forças de segurança do país. Na sexta (8), unidades da polícia de cidades de todas as regiões da Bolívia se rebelaram e deixaram de reprimir os opositores que exigiam a renúncia do presidente.

Na quinta, em um episódio simbólico do nível de tensão em que o país se encontra, a prefeita governista da cidade de Vinto foi humilhada publicamente por transportar camponeses apoiadores de Evo para confrontar manifestantes.

Arce Guzman teve o cabelo cortado, foi pintada de rosa e obrigada a andar descalça por vários quarteirões em meios aos gritos de “assassina! assassina!”. Além disso, a sede da prefeitura da cidade foi incendiada.

Manifestações no continente
A renúncia de Evo ocorre em meio a uma onda de manifestações contra governos na América do Sul. Ainda que as crises de cada país tenham suas particularidades, os líderes de Equador, Chile e, agora, Bolívia sofreram derrotas significativas.

No Equador, o presidente Lenín Moreno foi obrigado a recuar do corte de subsídios a combustíveis que existiam há 40 anos. A medida, parte de uma política de austeridade provocada por um acordo com o Fundo Monetário Internacional, aumentava consideravelmente os preços de diesel e gasolina no país e puxou outras demandas anteriores e questões indígenas.

No Chile, o aumento das tarifas de metrô desencadeou uma reação que ainda não terminou. Os protestos, que já deixaram ao menos 20 mortos e deixou milhares feridos, abraçaram outras demandas contra a desigualdade social no país e pressionam Sebastián Piñera, que foi obrigado a tomar uma série de medidas para aplacar os atos.

Agora, Evo, o líder sul-americano há mais tempo à frente de um país na região, cai na Bolívia. Se há diferenças entre os casos, a renúncia do presidente mostra que crises fermentadas há anos na América do Sul degringolaram todas em 2019.

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