Debate

Juristas analisam edição de impressionantes 1.000 medidas provisórias em vinte anos

Uso de Medida Provisória é maior que o Decreto Lei que as inspirou, lembra Ophir Cavalcante, ex-presidente da OAB

acessibilidade:

O presidente da República, Jair Bolsonaro assinou , recentemente, a Medida Provisória (MP) 1.000 que prorrogou até o fim deste ano o auxílio emergencial, com valor reduzido.

A numeração da proposta é simbólica: MP 1.000/2020 é histórica porque trata da milésima MP introduzida na legislação brasileira desde 2001, quando passaram a vigorar as regras atuais para esse tipo de instrumento.

A MP 1.000 também fez com que este ano passasse a ser o ano com mais medidas provisórias desde o início da contagem.

Ela foi a 83ª MP do ano, que agora supera as 82 publicadas em 2002. Uma diferença importante é que 2020 chegou a 83 MPs em apenas oito meses — em 2002, foram 82 ao longo de todo o ano.

Para saber a opinião do mundo jurídico sobre a validade para o pais das MPs (antigamente o expediente usado era o decreto-lei) o site direitoglobal ouviu ex-ministros da Justiça, magistrados e advogados de renome. Seguem as respectiva opiniões:

Torquato Jardim – ex-ministro da Justica e do Tribunal Superior Eleitoral – “O Executivo necessita de instrumento legal vinculante e de eficácia imediata para atender a circunstâncias relevantes e urgentes. Compartilha assim função legislativa com o Congresso Nacional. Tudo conforme as regras de independência e harmonia dos poderes postas na Constituição. Quadro perfeito para o regime parlamentarista. Neste não há “poder executivo” – nele “a função executiva” é tarefa de uma comissão legislativa representante de uma maioria parlamentar (o Conselho de Ministros chefiado pelo primeiro-ministro). Assim, a medida de relevância e urgência é editada já com o selo de aprovação política da maioria. Se a maioria lhe negar aprovação a consequência é a queda do Conselho e a eventual convocação de novas eleições para a Câmara dos Deputados. Há, assim, um forte estímulo à disciplina partidária e ao cumprimento do acordo de composição majoritária.
Nossa Constituinte, todavia, votou pelo presidencialismo mediante acordo nada lisonjeiro à ética pública. Rejeitou também os decretos-leis tornados símbolo do legalismo autoritário. E não criou mecanismo algum de eficácia imediata e permanente em face da relevância ou urgência da demanda. Restou intocado o instrumento parlamentarista. Evidente a incongruência conceitual. Some-se a tanto a presença de 25 ou mais partidos no Congresso Nacional e tem-se às claras o quanto o nosso instrumento de medidas provisórias é disfuncional. Ao presidente da República – eleito embora pelo voto direto, se lhe impõe uma “reeleição parlamentar” a cada votação de uma medida provisória. O Congresso Nacional tem dívida com a governabilidade.”

Jorge Maurique – ex-presidente da Ajufe, desembargador federal aposentado do TRF 4 e atualmente exercendo a advocacia – “A MP e uma coisa estranha no ordenamento jurídico e surgiu para substituir os famigerados Decretos-lei, do tempo da ditadura militar. Um instrumento jurídico esdrúxulo, que não deveria existir mas que se perpetua no nosso País, face a acomodação do legislativo e a fobia por alterar a legislação que acometeu todos os governantes brasileiros após 1988! Não deveria existir para um bom funcionamento equilibrado dos três poderes. Sua existência diminui o parlamento que se afasta da sua função principal.

Ophir Cavalcante – ex-presidente nacional da OAB – “Os constituintes de 1988 para dar um instrumento legislativo eficaz ao Chefe do Executivo, copiaram, de certa forma, o antigo Decreto-Lei do regime militar, delegando ao Presidente da República a edição de MP apenas em caráter emergencial (casos de relevância e urgência), sendo também limitada quanto a algumas matérias MP e sendo vedadas em relação a outras elencadas no art. 62, par. 1o, I, CF. Também ficou previsto que se não aprovadas pelo Congresso no prazo de 60 dias, perderiam a eficácia. A MP, portanto, apresenta um grau de delegação muito menor do que o decreto presidencial do regime anterior. Isso em virtude da necessária manifestação do Congresso para a conversão final da MP em lei e da perda de vigência da MP pela ausência de manifestação dos parlamentares em decorrência do esgotamento de seu prazo constitu cional. Entretanto, as constantes reedições de MPs sobre as mais variadas matérias, que não enquadravam nem na urgência e nem na emergência, sem o pronunciamento formal do legislativo e sem a perda de seus efeitos, quando decorrido o prazo de sua vigência, indicaram não só uma continuidade incidental das prerrogativas presidenciais do regime militar, como também a total banalização do instituto que vem sendo usado em evidente usurpação dos poders do Congresso Nacional, o que precisa ser revisto, havendo necessidade de um controle mais rigoroso pelo próprio Legislativo, que deve criar um processo interno mais simples e ágil à análise e rejeição quando não estiverem presentes os requisitos da urgência e da relevância. Em conclusão, o instrumento é formalmente interessante, mas na prática foi desvirtuado pelos c hefes do Executivo que assumiram pós CF de 1988, devendo haver um maior controle na edição.”

Sergio Batalha – advogado no Rio de Janeiro – “A possibilidade de em determinados momentos o Executivo ter a possibilidade de editar uma medida com força de lei existe em vários países do mundo. O problema do sistema brasileiro, que vem sendo aperfeiçoado, é a fragilidade do sistema representativo brasileiro. Você tem no Brasil um Executivo muito forte, eleito com dezenas de milhões de votos, em contraposição a um Legislativo pouco representativo, formado por congressistas e partidos sem uma verdadeira expressão na sociedade. O impeachment fora dos limites constitucionais só serviu para tornar esta relação ainda mais conflituosa. O problema em torno das medidas provisórias gira em torno das fragilidades e imperfeições do sistema representativo brasileiro, mais do que sobre um debate sobre técnica legislativa ou sobre mudanças na regulamentação de tais medidas. Só uma revalorização do parlamento no tocante à sua representatividade, e não como instrumento de golpes ou chantagens, pode pacificar a questão”.

Reportar Erro