STJ decide que alvo de delação pode acessar gravações sobre acordo
Ministros da Sexta Turma liberam delatado para verificar legalidade do acordo de colaboração, e a voluntariedade do delator
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) contrariou o apelo por sigilo feito pelo Ministério Público Federal (MPF), ao decidir dar à pessoa alvo de uma delação premiada o direito de acessar a gravação das negociações do acordo com o delator e da audiência em que a colaboração foi homologada pelo juiz. O objetivo é dar ao delatado o poder de verificar a legalidade e a regularidade do acordo, e atestar se houve voluntariedade do colaborador, ou se houve pressões para que fosse assinada a delação.
O MPF pedia que Jair Vinnícius da Veiga, denunciado na Operação Ressonância, fosse impedido de ter acesso às gravações de sua delação. E argumentou que o delatado não teria legitimidade para questionar a validade do acordo de colaboração premiada. O órgão ministerial citou que o artigo 4º, parágrafo 7º, da Lei 12.850/2013 estabelece que a audiência judicial de homologação do acordo é sigilosa. E alegava que a divulgação das tratativas poderia colocar em risco investigações ainda em andamento.
A Operação Ressonância foi uma das fases da Lava Jato, deflagrada no Rio de Janeiro em junho de 2018, para investigar uma organização criminosa que envolvia multinacionais em fraudes a licitação e formação de cartel, entre os anos de 1996 e 2017, no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into).
Natureza híbrida
O relator do recurso do MPF contra a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) de liberar os dados da delação, ministro Rogerio Schietti Cruz, rebateu o argumento por sigilo, afirmando que o artigo 3º-A da Lei 12.850/2013 estabelece que o acordo de colaboração premiada tem natureza híbrida, sendo ao mesmo tempo um negócio jurídico processual e um meio de obtenção de prova.
Mas explicou que, apesar desta condição mista, o primeiro aspecto prevalecia na jurisprudência quando se discutia a legitimidade do terceiro delatado para impugnar a validade do acordo: uma vez que se tratava de negócio jurídico personalíssimo, cabia ao terceiro apenas confrontar o conteúdo da palavra e das provas apresentadas pelo delator, mas não a validade formal do acordo celebrado.
O relator explicou que esse cenário começou a mudar em recentes julgados da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que passou a entender que, como meio de obtenção de prova, o acordo pode impactar gravemente a esfera jurídica do alvo da delação, razão pela qual é necessária a observância da legalidade, cujo desrespeito pode ser questionado por quem foi prejudicado.
Ao fazer um paralelo com a colheita de provas contra terceiros na busca e apreensão, o ministro comentou que é natural que esses terceiros tenham interesse e legitimidade para impugnar não apenas o conteúdo de tais provas, mas também a validade da medida que fez com que elas chegassem aos autos.
“Não é apenas o conteúdo da prova colhida que interfere na esfera jurídica do acusado, visto que esse conteúdo só pode ser valorado se a forma pela qual foi obtido for lícita. Daí a impropriedade de se sustentar que são apenas as provas fornecidas pelo delator que atingem o delatado, e não o acordo em si, porquanto foi só por meio do acordo – o qual deve respeitar a lei – que as provas foram obtidas”, disse o ministro.
Sigilo pontual, sem restringir publicidade
Para Schietti, o artigo 4º, parágrafo 7º, da Lei 12.850/2013, ao determinar que o juiz deverá “ouvir sigilosamente o colaborador”, não estabelece uma regra perpétua quanto à restrição da publicidade do ato. Segundo o ministro, trata-se apenas de preservar pontualmente aquele momento da investigação, em que o sigilo é necessário para assegurar a eficácia de diligências em andamento, as quais podem ser frustradas se o indivíduo delatado tiver acesso a elas.
Contudo, ponderou que, oferecida e recebida a denúncia, “a regra volta a ser a que deve imperar em todo Estado Democrático de Direito, isto é, publicidade dos atos estatais e respeito à ampla defesa e ao contraditório, nos termos do artigo 7º, parágrafo 3º, da Lei 12.850/2013”.
De acordo com o relator, a preocupação com as diligências em andamento é legítima, e, havendo alguma medida investigativa pendente, o juízo pode preservar o sigilo sobre ela, “mas sem vedar indefinidamente, em abstrato e de antemão, o acesso da defesa à totalidade das tratativas do acordo e à audiência de homologação”. (Com STJ)